Poucos juristas esquadrinham de forma tão contundente o Supremo Tribunal Federal (STF) como o carioca Joaquim Falcão. Formado em Direito pela PUC-RJ, com mestrado em Harvard e doutorado na Universidade de Genebra, o professor, advogado, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) exalta a importância fundamental da Corte à democracia brasileira, sem escamotear o que chama de suas patologias. Aos 80 anos, Falcão é categórico ao defender uma reforma do regimento interno do STF. Para ele, é preciso reduzir ao máximo as decisões individuais, ampliar a transparência e coibir a verborragia dos ministros. À frente do projeto Supremo em Números, da Fundação Getulio Vargas, compila estatísticas que comprovam a carga excessiva de processos, a lentidão dos julgamentos e a insegurança jurídica gerada pelas diversas instâncias decisórias dentro de um único tribunal. O jurista entende que só haverá maior eficácia interna a partir uma mudança de postura dentro da Corte:
– Só quem pode mudar o Supremo é o próprio Supremo.
Por que o STF ganhou tanto protagonismo no cotidiano do país, virando assunto de mesa de bar, motivando discussões em família e paixões políticas?
Por dois motivos. O primeiro é que o século 19 foi o século do Legislativo. O 20, do Executivo. E o 21, do Judiciário. Em todos os países que têm modelo de democracia e separação de poderes do Ocidente, o Judiciário tem assumido proposição e importância bastante grande. O segundo motivo é a TV Justiça. Nós nos modernizamos. O século atual é da transparência e da participação. No Brasil, há ainda mais dois fatores: há plena liberdade de expressão, as pessoas querem falar. Essa liberdade, aliada à disponibilidade tecnológica, fez com que o Supremo entrasse nas nossas casas. Isso é muito saudável. Na democracia, o que importa são poderes representativos do cidadão. Em geral, ele é representado através da eleição. Ocorre que os dois maiores poderes do século atual não são eleitos, o Banco Central e o Supremo. Então essa curiosidade participativa e representativa é inevitável.
Há quem culpe a transmissão das sessões por conta desse protagonismo do STF. Ele influencia no comportamento e nos votos dos ministros?
Toda mudança tem um período de adaptação e aperfeiçoamento. Há estudos mostrando que os ministros aumentaram o tempo para votar em função da exposição na mídia. Ora, o que está errado não é a exposição, é ministros aumentarem os votos. Este é um dos únicos países do mundo em que os votos são de uma extensão absoluta. Quem tem de se consertar é o ministro, e não retirar a transparência necessária da democracia.
Como o senhor vê a hostilidade aos ministros, representados como presidiários e urubus em protestos recentes?
O Supremo é absolutamente necessário à democracia, à paz. Ele não elimina conflitos. Democracia é ter conflitos e resolvê-los pacificamente, não por assaltos de violência ao poder, como vimos aqui e nos Estados Unidos. O Supremo é parte na pacificação e na resolução da violência. Agora, a crítica pode ser contra ou a favor, pelo aperfeiçoamento, por maior eficiência. Criticar o Supremo não é ser contra o Supremo. A crítica é necessária. Há uma espécie de ideologia dizendo que quem critica o Supremo é contra a democracia. Ao contrário. O Supremo precisa ser criticado. Roupas de presidiário, posts, cartazes, todas essas coisas foram usadas também em críticas ao Congresso, ao Executivo. Não se critica assim os empresários, os sindicalistas? A questão é o limite da crítica. Violência, não.
Muitos juristas consideram exagerada a resposta do STF a essas críticas, sobretudo a postura do ministro Alexandre de Moraes, que deflagrou operações policiais contra detratores. O STF pesou a mão?
Conheço bem o Alexandre, foi meu colega no Conselho Nacional de Justiça. Tecnicamente, é um dos mais preparados do Supremo. Seu livro Direito Constitucional já vendeu 800 mil exemplares. É uma pessoa muito determinada, decidida. Se ele extrapolou, os colegas têm de controlar, divergir e encontrar o equilíbrio. A vida não é um mar de rosas. Às vezes tem de acalmar o barco. Isso é rotina. Mas a maior crítica ao Supremo não é essa. Essa é uma crítica intelectual, de elite. A crítica do brasileiro é sobre eficiência, sobre demorar processos, não julgar. É sobre essas alianças que não ficam claras, de ministros com interesses X ou Y.
Criticar o Supremo não é ser contra o Supremo. A crítica é necessária. Há uma espécie de ideologia dizendo que quem critica o Supremo é contra a democracia. Ao contrário. Roupas de presidiário, posts, cartazes, todas essas coisas foram usadas também em críticas ao Congresso, ao Executivo. Não se critica assim os empresários, os sindicalistas? A questão é o limite da crítica. Violência, não.
O STF é uma Corte constitucional, mas julga praticamente tudo. A demora não é fruto da sobrecarga de processos?
Fala-se muito no devido processo legal, no contraditório, algo fundamental à democracia. Tem-se acesso ao Supremo, ele está aberto, mas qual é a primeira condição que eu, que entrei com um processo, quero exercer meu direito de ingressar na Justiça? Quero o direito de ser lido. Quero que o ministro leia meu processo. Você não tem esse direito. sabe quantas decisões a (então presidente do STF) Rosa Weber tomou, neste ano, sobre admissibilidade, ou seja, se o process é admitido? São 36 mil. Você acha que ela leu 36 mil? Impossível. O primeiro direito de todos é o de ser lido. De 1º de janeiro até hoje o Supremo recebeu 59 mil processos, 57 mil entraram no sistema. No plenário digital, votaram-se mais de 17 mil. Você acha que um ministro lê uma média de oito processos de 400 páginas por dia? Não lê. O sistema atual é contra o devido processo legal. E mesmo essa invenção do plenário virtual não impede que o ministro tenha de conhecer. Eu quero o direito de ser lido. A democracia no Supremo começa por aí, e a ineficiência dele não permite. É isso que a sociedade percebe, talvez não de uma forma tão estatística e clara, e vai para outras formas de julgar. A maioria das comunidades do Rio de Janeiro não usa a Justiça, usa milícias e traficantes. Ou seja, enquanto o Supremo não resolver o seu próprio problema, esse mal estar com o tribunal vai continuar. Não é porque decidiu assim ou assado, isso é para a elite que chegou lá.
Como aprimorar esse acesso à Justiça?
Temos de ter acesso à Justiça e frear esse acesso ao Judiciário. Em muitos países, nem tudo vai para o Judiciário. Seleciona-se aquilo que importa ao bem público maior, que é a Justiça. Saber se uma capivara é patrimônio ou não… Desculpe: é preciso uma seletividade. Existe a sensação de que, quanto mais processos, mais poder os ministros têm, daí podem interferir em qualquer área da vida humana e do cotidiano.
Há uma movimentação do presidente da Câmara, Arthur Lira, para frear o acesso ao STF por partidos derrotados em votações no Congresso. É uma postura positiva?
A Constituição foi feita num clima de reação à ditadura militar, em que havia três poderes abertos, mas só quem mandava era o Executivo. O que a Constituição fez foi ampliar os controles sobre o Executivo, empoderando o Supremo. Isso abriu o número de entes que podem arguir inconstitucionalidade, como partidos políticos, entidades. Foi uma reação histórica a uma patologia. Resta saber se agora essa amplitude cumpriu seu dever e temos de voltar ao padrão normal de outros países. Não mais as portas escancaradas, mas mais seletivas àquilo que importa ao país.
A intenção do Senado de frear decisões monocráticas e fixar mandato aos ministros é positiva ou revanchismo ante esse protagonismo do STF?
Há mais de 10 anos o meu grupo, Supremo em Números, aponta esse excesso de decisões monocráticas e pedidos de vista. Isso entrou na pauta nacional e incomoda, mas é a realidade. O poder não é de um ministro, é da instituição. O ministro não tem competência para decidir sozinho questões constitucionais, a não ser em casos excepcionalíssimos. A academia começou a discutir a realidade do Supremo, o realismo constitucional, e verificou-se que os ministros pediam vista e demoravam 500 dias, que foro privilegiado não funciona. Foi o debate da democracia, com tecnologia, pesquisa de realidade e mídia, que criou esse caldo, que diz: “Supremo, muda!”. É uma patologia, que faz o Supremo interferir em outros poderes, mas isso é um sintoma, não é o cerne. O drama é que só quem pode mudar o Supremo é o próprio Supremo.
O senhor elogiou a passagem da ministra Rosa Weber pelo STF, sobretudo porque ela reformou o regimento interno, agilizando o funcionamento da Corte. Há disposição em aprofundar isso?
O desafio do (atual presidente do STF) ministro (Luis Roberto) Barroso é unir o Supremo para que o Supremo reforme a si próprio. Essa união é indispensável. Com seu estilo discreto e paciente, Rosa conseguiu 20%, 30%. Barroso precisa ter mais concondância para essas mudanças regimentais. Veja o paradoxo do Brasil: o Supremo causa esse problema todo por mudanças regimentais, não por causa da Constituição. Se a pessoa é a favor do aborto ou não, se é contra cotas ou não, se imposto tal foi cobrado errado... Isso não atinge 90% dos brasileiros. Agora, o processo decisório do Supremo atinge. Não se pode mais falar que o Supremo é assim ou assado, e sim que ministro é assim ou assado. E não se pode tomar individualmente ministros que estão na mídia como padrão do Supremo. Há vários ministros que são absolutamente discretos, cumprem com a lei. Há outros que não cumprem, ou têm interpretações próprias.
O ministro Barroso protagonizou discussões ásperas em plenário e deu declarações polêmicas, como “vencemos o bolsonarismo” e “perdeu, mané”. Ele tem perfil para unir o STF?
Ele tem vontade e está preparado. Se vai conseguir, não sei. Essas duas declarações são infelizes. Descumpriu a lei. Não pode estar falando fora dos autos. A pauta mais importante do Supremo hoje é o comportamento de alguns ministros. Pretendem ser o Supremo. Não são. São apenas um ministro.
O ministro Gilmar Mendes fala dia sim, dia também, sobre assuntos jurídicos, políticos, econômicos. Ele é o expoente desse grupo?
Não gosto de falar de pessoas. Quero apenas dizer que pessoas não são instituições. E há de ter limites.
Para um Supremo mais eficiente, mais democrático, é preciso mais transparência. A constituição exige publicidade dos atos públicos. Quero transparência, pois sem ela não se pode avaliar o desempenho. É preciso comparar quanto um ministro ganha com quanto ele custa.
Sempre se falou que o Supremo são 11 ilhas…
Não são 11, são 15. Como foco de decisões, temos os 11 ministros. Depois tem a presidência, com a competência de admissibilidade. Tem as duas turmas, mais o plenário. Imagine a instabilidade que isso traz para o Brasil, para a política econômica, para o custo Brasil, para as empresas. Você nunca sabe se vai ser julgado por um desses 15, pode ser julgado monocraticamente, por uma turma ou pelo plenário. Essa insegurança leva à instabilidade social. Isso tudo só pode ser sanado por um novo processo decisório do Supremo.
Esse novo processo prescinde das turmas? As decisões devem ser exclusivas do plenário?
Quando uma turma forma uma maioria X, as decisões são naquela linha. Viu-se isso nos casos da Operação Lava-Jato. É também um modo de você dizer quem vai me julgar, e não o Supremo como um todo. Este ano, a primeira turma decidiu 3 mil processos. A segunda, 4 mil. E o plenário, onde está o Supremo, o poder, decidiu 7 mil ações. Alguma coisa está errada.
Como melhorar a eficácia do STF?
Para um Supremo melhor, mais eficiente, democrático, é preciso mais transparência. A Constituição exige publicidade dos atos públicos. Quanto ganha um ministro do STF? Não o salário, mas o total da pessoa física. Ele ganha por palestra? Ganha com viagens? Ganha por quais outros modos? Não estou dizendo que esses modos são certos ou errados. Quero transparência, pois sem ela não se pode nem avaliar o desempenho. Não é só quanto ele ganha, mas quanto custa um ministro do Supremo. Tem motoristas, automóvel, assessores. É preciso comparar quanto ele ganha com quanto ele custa. Um deputado eleito tem de prestar contas no TSE com a declaração de imposto de renda. Por que a exigência só para um poder? Tem de ser para todos.
O senhor é a favor de mandatos para os ministros?
Sim, de 10 anos. No passado, o (ministro da Justiça) Flávio Dino defendia 12 anos. Pode ser por aí. O tempo ficou mais rápido, as ideias ficaram mais diferentes rapidamente.
O atual sistema de indicação, com exclusividade do presidente e sabatina no Senado, funciona bem?
O primeiro de tudo é não indicar uma pessoa a quem se possa telefonar. Não tem modelo que dê certo se esse for o princípio.
A demora do presidente Lula em indicar o substituto de Rosa Weber está atrapalhando o funcionamento da Corte?
Isso é privilégio dele. É uma questão de sensibilidade política e administrativa. A mídia é indispensável neste momento. Como em vários países, deveria haver um período de escrutínio do indicado pela sociedade. Essa indicação apenas submetida ao juízo político-partidário do Senado é insuficiente. Nos Estados Unidos, levaram essa demora a níveis impensáveis para evitar que Obama indicasse um ministro e, depois, o Trump indicasse outro no lugar dele. Isso é manipulação da democracia.
O STF sofreu violência inaudita no 8 de janeiro e começou a julgar os acusados. Esses processos estão sendo bem conduzidos? Está se fazendo justiça ou vingança?
Não acredito em vingança. Pode ter um ânimo mais exaltado, mas vingança institucional não há. Quanto menos monocrática forem as decisões, melhor. O problema é que o Supremo está viciado no monocratismo, o que aumenta a possibilidade de errar.