Áudios de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) que mostram relatos de tortura durante a ditadura militar foram publicados neste domingo (17) pela jornalista Míriam Leitão, colunista do jornal O Globo. Entre as mais de 10 mil horas de gravações, um general defende a apuração do caso de uma grávida que sofreu aborto após receber choques elétricos na genitália; um ministro denuncia uma confissão de roubo a banco, obtida a marteladas, de um suspeito que estava preso à época do crime; outro ministro afirma que começa a acreditar nas torturas "porque já há precedente"; um revisor relata o caso de um suspeito que assumiu crime que não cometeu para não apanhar; entre outros.
Os áudios foram obtidos após o Supremo Tribunal Federal (STF) determinar acesso irrestrito, e estão sendo analisados pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O professor realiza esse trabalho desde 2018 e já está na metade do processo, o que abrange o período entre 1975 e 1979, de acordo com o g1. Fico ressalta que cabe aos historiadores apresentar a história como ela é, embora algumas pessoas tentem negar que houve tortura na ditadura.
— Quando a gente vive tempos traumáticos, algumas pessoas tendem a criar memórias que as apaziguem com o passado. Outra coisa é a história. Não há dúvida de que houve tortura, isso é óbvio. É até um pouco reiterativo, repetitivo dizer que houve tortura. Houve. Ponto final. Claro que houve. Outra coisa é a memória que algumas pessoas constroem, de negação da tortura — afirmou o historiador.
Conteúdo das gravações
General defende apuração de caso de mulher que sofreu aborto após choque elétrico
Em 24 de junho de 1977, o general Rodrigo Octávio se posiciona contra a tortura, mas a favor do regime, que chama de “revolução”. Diz, durante o julgamento da Apelação 41.048, que um "fato mais grave" suscita a análise, envolvendo "acusações referentes a tortura e sevícias das mais requintadas". O general descreve que, conforme alguns réus, uma mulher grávida de três meses sofreu aborto após "castigos físicos" no DOI-Codi, órgão militar da ditadura. Conforme o marido dessa mulher, ela sofreu "choques elétricos em seu aparelho genital". Octávio defende a apuração do caso.
— É preciso que se evidencie de maneira clara e insofismável que o governo, através das Forças Armadas e dos órgãos de segurança, não pode responder pelo abuso e a ignorância e a maldade de irresponsáveis que usam torturas e sevícias para obtenção de pretensas provas comprometedoras na fase investigatória, pensando, em sua limitação cerebral, que estão bem servindo à estrutura política e jurídica regente, quando na realidade concorrem apenas na prática desumana, ilegal em denegrir a revolução retratando a sua configuração jurídica do Estado de Direito e abalando a confiança nacional pelo crime de terror e insegurança, criados na consecução honesta e urgente dos objetivos revolucionários — diz Octávio.
Ministro diz que réu assumiu crime cometido enquanto estava na prisão após marteladas
Em 15 de junho de 1976, o ministro togado Amarílio Lopes Salgado diz durante o julgamento da Apelação 41.027 que um homem suspeito de assaltar dois bancos estava preso quando houve outro assalto, e acabou confessando o crime após receber marteladas.
— É que ele alega que (...) esse (outro assalto) ele não podia (ter cometido) porque estava preso. “Eu estou preso, estava preso na Ilha Grande.” Faz uma diligência e vem isso aí. Vou dar uma cópia para o procurador-geral porque esse moço apanhou um bocado, baixou hospital e citou o nome das duas pessoas que martelaram ele. (...) Eles podem negar, mas que os nomes dos dois estão aí, estão. É fulano e beltrano. Martelaram esse moço, daí a confissão dele. Em juízo, ele confessa que não podia: “Eu estava lá na Ilha Grande”, no dia 26. “No dia 30, eu fugi e assaltei o banco tal no dia 31, e no dia 4 assaltei outro banco, mas no dia 26, não.” As declarações dele são longas, acho que no acórdão devia ser feito menção a isso — afirma.
Revisor afirma que as pessoas apanham mesmo
Uma pessoa não identificada se apresenta como revisora da Apelação 41.027, julgada em 16 de junho de 1976, e diz que um investigado que "não tinha nada a ver com a história" foi indiciado. Relata ainda que "muitas vezes" o inquérito policial é desacreditado, porque as pessoas "apanham mesmo" durante as investigações e tentam evitar essa violência.
— Eu sou revisor de um processo que aparece que eram quatro indiciados no inquérito, todos eles confessaram direitinho na polícia que tinham tomado parte. Uns acusaram os outros, mas na ocasião do sumário ficou provado que um deles não tinha nada a ver com a história. Esse trabalhava direitinho. Por que razão ele havia confessado? E ele disse: “Ou a gente confessa ou entra no pau”. E é o que está acontecendo. Entrou dessa vez, e muita gente tem entrado, por isso que muitas vezes a gente acha que o inquérito na polícia não tem valor, por causa desses casos, desses casos. Eles apanham mesmo. Por isso, quando vejo um inquérito na polícia, eu fico logo com um pé atrás — descreve.
Ministro afirma que começa a acreditar nas torturas
Em 13 de outubro de 1976, o ministro togado Waldemar Torres da Costa, durante o julgamento da Apelação 41.229, diz:
— Começo a pedir a atenção dos meus eminentes pares para as apurações que são realizadas por oficiais das Forças Armadas. Quando as torturas são alegadas e às vezes impossíveis de ser provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente.
Advogado relata que há tortura
Além dos áudios de integrantes do STM, em 20 de junho de 1977, durante o julgamento da Apelação 41.301, o advogado Sobral Pinto relata que há casos de tortura:
— Os senhores ministros não acreditam na tortura. É uma pena que não possam acompanhar os processos como um advogado da minha categoria acompanha para ver como essa tortura se realiza permanentemente. E nesse processo, senhores juízes, há prova documental da tortura que sofreu Marco Antonio. Há um laudo firmado por médicos militares atestando essa tortura. O ilustre eminente advogado de Marco Antonio, doutor Mario Simas, vai mostrar aos senhores ministros esse documento.