Pegar o celular, abrir uma rede social e assistir a vídeos já virou um ato quase inconsciente. Rimos de um conteúdo engraçado, nos emocionamos com algo fofo, descobrimos novidades curiosas. Quando percebemos, o tempo passou. Geralmente, são vídeos curtos, que hipnotizam e impelem a ver outros – e que dominaram as mídias sociais a partir da popularização do TikTok, disseminando-se em outras plataformas, como Instagram e YouTube.
Estudos apontam efeitos negativos desses conteúdos na saúde e no comportamento. Os Estados Unidos acusaram o TikTok de prejudicar a saúde mental dos jovens, e documentos internos vazados apontam que a plataforma sabia dos efeitos nocivos. O formato, contudo, inegavelmente veio para ficar – e especialistas apontam que há maneiras de melhorar a relação com esses conteúdos.
Embora a duração tenha relação, não é todo tipo de vídeo curto que desperta atração, frisa Fabiano Moulin de Moraes, médico neurologista, professor da Universidade Federal de São Paulo e membro da Associação Brasileira de Neurologistas (ABN). São conteúdos bem organizados, com pessoas, imagens interessantes e músicas bem encaixadas.
Como seres engajados em perspectivas sensoriais, quando há estímulos visuais e auditivos ricos, há maior engajamento, explica o professor. E tudo o que engaja mais ativa o sistema de recompensa – que envolve a famosa dopamina, já, de certo modo, banalizada.
O sistema funciona na base do cérebro e ativa regiões relacionadas ao engajamento e ao prazer. A natureza incentiva os humanos a prestar atenção (e a engajar e despender o tempo) naquilo que ajuda na sobrevivência – e o sistema é como uma espécie de bússola. Ele pode ser ativado pelos elementos que importam, como alimentação, sexo, sociabilidade, entre outros, e por surpresas positivas.
A neurociência tem mostrado, por meio de estudos de neuroimagem, que esses vídeos ativam de forma muito potente esse sistema e captam o foco – inclusive, alterando a percepção de passagem do tempo, levando as pessoas a assistir a muitos vídeos em sequência, acrescenta Félix Kessler, chefe do Serviço de Psiquiatria de Adições e Forense do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Desta maneira, reforçam o comportamento de uso ou de repetição.
Com estímulos de longa duração, ainda que prazerosos, o cérebro se adapta – o que está relacionado ao impulso de aumentar a velocidade de reprodução. Os vídeos curtos mantêm a atenção constante, pois não permitem a adaptação hedônica (tendência humana para regressar rapidamente a um nível estável de felicidade), além de envolver elementos como comida, sexo, relações, informações.
— Esse dinamismo, essa velocidade, associados com essas coisas todas que nos importam para a sobrevivência e, portanto, ativam o sistema de recompensa, são muito difíceis de resistir. É muito difícil não cair nessa “armadilha”. E não é à toa o sucesso que essas empresas têm — destaca Moraes.
Desencontro entre genética e modo de vida
O que estimulava os humanos durante milhares de anos na natureza, contudo, não é necessariamente competente para a sobrevivência nos dias atuais. Há um desencontro entre a genética e o modo de vida atual.
Além disso, o sistema era ativado por meio das próprias vivências e descobertas. Agora, porém, nas redes sociais, é o outro que vive enquanto ativamos uma resposta com base nesses conteúdos. Continuamos, no entanto, no mesmo estado, sem que ocorra algum tipo de crescimento pessoal. Isso gera impactos como comparação social e sensação de inércia ao passo que os outros estão vivendo. O médico aponta esse como um dos motivos para a saúde mental estar tão degradada.
Ao atingir o prazer por meio dos vídeos, abre-se mão de diversas outras ações que também liberariam dopamina de forma mais prolongada e levariam a uma sensação de bem-estar e de felicidade mais profunda e duradoura, segundo a psicóloga Aline Restano, membro do Grupo de Estudos em Adições Tecnológicas (Geat). Assim, a vida vai sofrendo um esvaziamento, e ela se vicia nesses pequenos momentos de prazer.
Não somente o ato de assistir gera prazer, como também o fato de finalizar a tarefa – outras, na vida, costumam demorar mais. A rolagem infinita dos aplicativos também desempenha um papel nesse vício.
— Os vídeos acabam ativando um mecanismo em que é muito rápido o prazer, e rapidamente você tem de ver outro para ter o mesmo tipo de prazer — expõe.
Os efeitos na saúde e no comportamento
O problema é que as pessoas podem desenvolver tolerância, sendo necessários estímulos cada vez mais frequentes ou intensos para desencadear a mesma liberação de dopamina, aponta Moraes.
— A grande maioria dos seres humanos está com uma capacidade diminuída de concentração e atenção por mais tempo. Estamos vendo um filme e paramos para ver algum vídeo no meio ou para outros usos, mensagem, redes sociais, enfim, mas a grande maioria das pessoas não tem conseguido mais ficar duas, três horas em uma única tarefa como antes — destaca Aline.
Além disso, há o desenvolvimento de comportamentos compulsivos, esclarece o psiquiatra Felix Kessler. Assim, quanto mais tempo gasto na plataforma, maior a sensação de prazer ou de satisfação.
O excesso pode gerar outros efeitos, conforme os especialistas:
- Má qualidade do sono ou insônia
- Sedentarismo
- Estresse
- Diminuição da qualidade das relações interpessoais presenciais
- Diminuição do foco e capacidade de concentração
- Baixa produtividade
- Brain rot ("apodrecimento cerebral", relacionado a informações de má qualidade)
- Ansiedade
- Irritabilidade
- Solidão e tristeza
Embora ainda suscitem discussões na literatura, há evidências para inferir causalidade entre o uso das mídias sociais, especialmente precoce, e um pior desenvolvimento da saúde mental – ou seja, quem usa mais mídias vai adoecer, segundo o neurologista Fabiano Moulin de Moraes.
Em interações presenciais, há uma ativação maior do sistema de recompensa, conforme o neurologista. Depois, menos impactante, mas ainda presente, no online síncrono, e, menos ainda, no online assíncrono. O que acontece no caso dos vídeos curtos, contudo, é que eles compensam tanto na dinâmica e na qualidade do estímulo que acabam sendo muito viciantes e impactantes.
— Eu tenho, em um minuto, 10 coisas tão dinâmicas, tão bem construídas, me fazendo rir, chorar, emocionar, ter raiva. É tão bem feito que você não consegue ter comparação na vida real. E aí, realmente, a vida real fica menos interessante. Perde a graça. Esse é um dos prejuízos graves — salienta.
A pessoa passa a perceber a vida como mais chata, banal, tediosa. Como as pessoas não são treinadas socialmente para lidar com as emoções negativas, todo esse contexto leva-as a fugir da realidade e procurar refúgio naquela mais ativadora e estimuladora.
Além de a atenção do usuário ser o produto das plataformas, as pessoas deixam o afeto e as emoções serem guiadas por outro, sob a falsa impressão de que estão no comando, aponta o professor da Unifesp. O problema disso é que há um “orçamento” para atenção e afeto, e, assim, sobra menos para direcionar ao que faz sentido para a pessoa – como a autodescoberta de quem se é e do que se quer. Torna-se mais fácil “perder-se” na vida e desencontrar-se de si mesmo e da família – e, consequentemente, terceirizar o viver para essas plataformas.
Como mitigar os efeitos
Não é necessário demonizar as mídias, frisa o professor. É importante que as pessoas entendam o que acontece para que possam tomar decisões melhores – o que não vê ocorrer hoje.
— Claro que eu posso usar as mídias à vontade, não tem problema, mas que isso faça parte do que eu quero, não do que querem para mim — ressalta Moraes.
Ainda que o cenário pareça desanimador e pessimista, há maneiras de mitigar esses efeitos. É preciso tomar consciência para assumir as rédeas das consequências do uso. O primeiro passo é prestar atenção.
Confira dicas dos especialistas para melhorar a relação com os vídeos curtos – e, consequentemente, com a atenção:
Menu de dopamina
Nos próprios aplicativos de vídeo, multiplicam-se sugestões de como fazer um “menu de dopamina” – um cardápio de atividades para obtê-la de forma mais saudável. Os especialistas, no entanto, reprovam o uso do termo, pois salientam que o conceito é simplório, quando, na verdade, o sistema é complexo e envolve outros neurotransmissores além da dopamina.
Felix Kessler recomenda buscar outras opções não tão imediatistas para “desviar” a atenção – leitura, hobbies, música, dança, viajar, relacionar-se com família e amigos, controlar o uso de tecnologia e mídias sociais. O psiquiatra sugere fazer uma lista dos elementos mais importantes na vida e o quanto se pretende despender de tempo para cada um deles e confrontar com a realidade.