As fake news que se espalharam de forma epidêmica nos celulares de brasileiros comuns durante as eleições foram catapultadas, antes, por grupos do WhatsApp destinados a discutir política e a apoiar candidatos. Dentro de cada grupo, as mentiras eram compartilhadas de forma quase industrial para prejudicar rivais e preparar o terreno contra denúncias ao presidenciável defendido. As conclusões são de estudo realizado desde o ano passado por 13 pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), prestes a ser publicado.
A pesquisa analisou 438,4 mil mensagens distribuídas em 90 grupos de WhatsApp situados à direita e à esquerda para entender como o aplicativo foi empregado para divulgar notícias falsas durante as eleições para a Presidência. Os estudiosos descobriram que mentiras chegam a grupos intermediários de potenciais apoiadores, responsáveis por dar o pontapé inicial para que o conteúdo enganoso chegue a eleitores comuns.
O curioso é que cerca de 99% dos integrantes estavam conectados em mais de um grupo. Dentro desse universo, os articuladores primários tratavam de só compartilhar notícias falsas especificamente em espaços onde as mentiras poderiam ser entendidas como verdade. Fake news de religião, por exemplo, apenas nos grupos dedicados ao assunto.
A pesquisa observou que fóruns favoráveis ao presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) foram os que mais ajudaram a promover mentiras, o que fortalece a denúncia levantada pelo jornal Folha de S.Paulo sobre empresas que contrataram serviços de disparo de mensagens em massa contra o adversário, Fernando Haddad (PT).
O estudo foi conduzido pelo Grupo de Pesquisa em Tecnologias (GPT) da Comunicação e Política da Uerj, ligado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD).
— Há indícios de profissionalização: produção sistemática de fake news com alguma qualidade estética, sobre temas diferentes, mas distribuídas em grupos específicos — afirma João Guilherme Bastos dos Santos, pesquisador que está à frente da análise de dados de WhatsApp do GPT.
Confira abaixo a entrevista concedida pelo pesquisador ao GaúchaZH.
Qual é o caminho da notícia falsa?
As pessoas compartilham fake news sistematicamente para fazer a máquina funcionar. O caminho da notícia falsa depende do público visado. Há notícias específicas para perfis específicos de eleitor. Há, por exemplo, fake news voltadas à segurança pública, com estatísticas falsas sobre a quantidade de criminosos soltos, mas esse tipo não tem tanta repercussão em grupos que discutem questões religiosas ou familiares. Percebemos um índice muito maior de circulação de notícias falsas em grupos pró-Bolsonaro, mas elas aparecem em qualquer grupo: quando o Bolsonaro levou a facada, grupos contra ele tiveram fake news dizendo que a facada era mentira. Ainda assim, a sistematicidade nos grupos pró-Bolsonaro é claramente maior do que nos contra ele. A dificuldade de viralização é resolvida com o Whatsapp. Ao compartilhar de um grupo para outro, você aumenta o potencial de a informação falsa ser vista. Há um aumento exponencial na visualização por pessoas interessadas em política, o que aumenta a predisposição de ela ser lida e compartilhada. Os grupos são etapa intermediária entre a emissão e o alcance. Nossa pesquisa não se focou na produção, mas na interconexão. Chegamos à conclusão de que essas notícias falsas chegam em grupos de família a partir de grupos que falam sobre política.
Mas se dá esse percurso da mensagem de um emissor desconhecido e distante até pessoas próximas, até uma rede familiar?
Você tem duas ideias bem clássicas. A primeira é sobre os seis graus de separação, criada pelo o psicólogo americano Stanley Milgram (a teoria afirma que bastam seis laços de amizade em cadeia para que duas pessoas quaisquer no mundo estejam ligadas). Um segundo conceito é o two-step-flow, a comunicação em duas etapas: há autoridades locais, como a liderança do bairro ou o pastor, que fazem a mediação entre uma informação difundida e as pessoas, de forma a dar credibilidade à informação. A análise dos grupos de Whats ajuda a entender esses dois processos. Sobre o primeiro, há pessoas participando em mais de um grupo ao mesmo tempo, o que diminui a distância entre as pessoas. Depois, quando a fake news chega ao grupo da família ou dos amigos, os integrantes do grupo recebem a informação já conferindo credibilidade à pessoa que enviou, porque não veio de um número aleatório no Whats. O que não esperávamos era a colaboração tão sistemática das pessoas em difundir notícias falsas. Por mais que não percebam que são falsas, não há mudança de comportamento apesar do desmentido (checagem feita pela imprensa). Mesmo assim, chega uma nova leva de notícias falsas e as pessoas já estão as compartilhando.
Há alguma orientação, alguma orquestração nesses grupos?
Sim. Fala-se para divulgar no grupo da família de forma urgente, insiste-se que as pessoas “precisam saber”. A notícia falsa, é claro, não aparece como falsa, mas como exclusiva, importantíssima. Muitas vezes, há um projeto de lei com o número falso: você vai checar e ele nem existe, ou é o número de outro projeto de lei. Há uma profissionalização na distribuição das fake news, que são enviadas continuamente com uma qualidade estética razoável.
Há alguma preocupação com a verdade nesses grupos? As pessoas questionam as informações?
Na pré-campanha, havia maior abertura, alguns diziam que muitas fake news pareciam montagem. Mas, conforme a campanha se intensificou, isso mudou. Aí, quem contestava muito dizendo que a notícia poderia ser falsa ou que o Bolsonaro não tinha se saído tão bem em entrevista passava a ser acusado de ser petista infiltrado. Se esse tipo de pessoa seguia questionando, era, então, removida do grupo. É um comportamento que desincentiva a contestação às informações.
A produção de fake news aumenta em períodos como debates ou entrevistas?
Sim, há picos. O foco de fake news aumenta em debates, em eventos emblemáticos, como a facada em Bolsonaro, e quando sai uma notícia que abala a campanha de um candidato que o grupo ajuda. Ou, ainda, imediatamente antes do dia da votação, para o desmentido não ter tempo de alcançar as pessoas atingidas.
Vocês entrevistaram profissionais de marketing também. O que foi descoberto?
Os relatos foram de que não há grupos de produção de notícias falsas dentro do QG da campanha. São grupos indiretamente vinculados à campanha, com pessoas produzindo sistematicamente notícias falsas. O que vimos na análise foi a etapa intermediária e como o WhatsApp, mesmo sendo rede privada, pode ser apropriado dessa forma. Vimos investimento na profissionalização das fake news, mas não conseguimos apontar quais são as fontes.
As fake news eram produzidas mais para a direita ou para a esquerda?
Claramente havia um lado mais atuante, e isso foi visto também por outras pesquisas do INCT.DD. Grupos conservadores e de direita, nesta eleição, compartilharam mais notícias falsas. As fake news do outro lado, em geral, não envolvem produção profissional e divulgação sistemática. São boatos, como as contestações à veracidade da facada a Bolsonaro. Nesses casos, as pessoas compartilham com textos próprios a sua opinião, diferentemente de outras fake news, que são imagens ou links compartilhados de forma sistemática, sem qualquer comentário pessoal, por um grande grupo.
Quais as fake news que vocês viram ganhar mais corpo?
Uma primeira que chamou bastante atenção foi a tese de que a facada (em Bolsonaro) havia sido arquitetada pelo PT, já depois de o Adelio Bispo de Oliveira ser identificado. Depois, há uma desqualificação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e das urnas, sobretudo no período após a votação e antes da apuração. Também havia fake news sobre o Haddad ser a favor da pedofilia e do incesto. Outro ponto foi em relação às igrejas, associando Haddad e outros candidatos ao demônio, falando que eles fechariam igrejas, que eram contra a família, como o meme da Manuela D’Ávila com a camiseta “Jesus é travesti”. Por último, fake news relacionadas à segurança, sobre o PT fazer parte de uma rede criminosa mais ampla. Sobre isso, há dois pontos importantes: são informações falsas, mas os produtores se aproveitam de medos e anseios reais, o que ajuda a viralizar. As pessoas já duvidavam das urnas antes, mas agora isso foi potencializado enormemente. Desde 2012, o (pastor) Silas Malafaia fala sobre um suposto “kit gay”, então igrejas evangélicas já tinham medo. Esse medo foi retomado e potencializado. Pega-se elementos que um grupo tinha tendência a acreditar e se constrói uma narrativa. O segundo ponto é essa questão temática: as fake news são feitas para um grupo específico, sobre religião ou moral ou segurança. São indícios de profissionalização: produção sistemática de fake news com alguma qualidade estética, sobre temas diferentes, distribuídas em grupos diferentes. A notícia que analisamos sobre as urnas fraudadas circulou em muitos grupos do WhatsApp, mas praticamente só nos grupos do Bolsonaro e de conservadores, embora muitas pessoas fizessem parte de vários grupos. Isso mostra que a notícia falsa tem caminhos preferenciais dependendo do que parece ser apropriado.