Descendentes de duas personalidades que estavam em lados opostos na época do golpe que instaurou a ditadura em 1964, Christopher Goulart, neto do então presidente João Goulart, e Enio Meneghetti, neto do então governador gaúcho Ildo Meneghetti, escrevem sobre o período.
Em artigos publicados na ZH desta sexta-feira, eles motivam um debate sobre um dos períodos mais controvertidos e emblemáticos da história recente do país. Leia os textos abaixo:
A verdade é inconvertível, por Christopher Goulart*
"Brasileiros, é hora de reformas de estrutura, de métodos, de estilo de trabalho e objetivo, portanto uma reforma geral." Sim, houve um tempo em que tínhamos um presidente convicto de que o Brasil necessitava quebrar paradigmas para avançar. E ousou deixar o plano da teoria para ingressar na prática efetiva. Tal frase foi proferida no maior comício público de nossa história, no dia 13 de março de 1964, por João Belchior Marques Goulart. O resultado já se conhece. No dia 1º de abril do mesmo ano, dia da mentira, um golpe civil-militar condenou nosso país a 21 anos de ditadura, com supressão das liberdades políticas individuais e coletivas, perseguições, torturas, exílios e assassinatos. Para o presidente Jango, o preço foi a morte na solidão do exílio.
Todos os dias essa história é escrita e reescrita de várias formas, de acordo com diferentes versões. De outra sorte, é comum ouvir o provérbio "todos os fatos têm três versões: a sua, a minha e a verdadeira". A verdade sobre a derrocada inconstitucional do presidente Jango e suas consequências está retratada de forma fidedigna no excelente documentário O Dia que Durou 21 Anos, dirigido por Camilo Tavares e produzido por seu pai, Flávio Tavares. Próximos à data do cinquentenário deste triste capítulo que nos envergonha e mancha com sangue as páginas da nação brasileira, a ninguém mais cabe desconhecer a verdade da influência do governo dos Estados Unidos no golpe de Estado no Brasil. Várias gerações precisam saber que a CIA e a própria Casa Branca, lideradas pelos presidentes americanos Kennedy e Johnson, se organizaram para derrubar Jango e subverter a ordem interna no Brasil, apoiando um regime de exceção que estagnou nossa Ordem e Progresso.
A verdade assusta os opressores que apoiaram uma ditadura implantada contra o povo brasileiro. Assusta os pseudodemocratas que insistem em manter seus privilégios fingindo serem cegos, surdos e mudos perante o contexto social. São os mesmos que se submetiam caladamente às prepotências da ditadura que cultuam. Estes, sim, têm medo da verdade que teima em se impor hoje mostrando quem é quem. Filmes como O Dia que Durou 21 Anos mostram uma realidade que muitos não querem ver.
Fala-se por aí que o governo de Jango era "subversivo" e que implantaria uma República sindicalista ou até mesmo comunista no Brasil. Que Jango era "fraco" ou que não tinha pulso para reagir ao golpe. Muitos desses que falam, inclusive, são saudosistas do famigerado Ato Institucional nº 5, que mergulhou o país no período mais sombrio da história da República.
Verdade seja dita, 50 anos é tempo suficiente para percebermos que a "subversão" do presidente Jango consistia na vontade de realizar profundas reformas estruturais e institucionais no Estado brasileiro, que até hoje não aconteceram; que sua "omissão" de reação ao golpe de Estado foi um ato humanitário que evitou uma guerra civil; que jamais existiu na nossa história um "fraco" com tanta coragem para enfrentar o imperialismo americano, com o claro objetivo de consolidar um país mais justo para todos os brasileiros. Que venham os filmes. Cada um conte a sua história, cientes de que a verdade é inconvertível.
*Secretário-adjunto da Fasc, neto de João Goulart
Crime impossível, por Enio Meneghetti*
Assisti a O Dia que Durou 21 Anos, de Camilo Tavares, bem como li a matéria, em ZH de 20/04, "Este filme é uma bofetada", com Flávio Tavares. Meu avô era o governador do Rio Grande do Sul em 1964, sendo citado na matéria, e o assunto ocupa boa parte de sua biografia, Baile de Cobras, de minha autoria.
Chamo a atenção para algo que no Direito Penal seria classificado como "crime impossível".
O filme aborda a participação dos americanos na queda de Jango. Apresenta conversas de John Kennedy e Lindon Johnson com o embaixador Lincoln Gordon.
Poderiam ter entrevistado Jacob Gorender, um homem de esquerda, ativo participante daqueles acontecimentos. Em seu clássico Combate nas Trevas - Das ilusões perdidas à luta armada, o ex-militante do PCB-R (de Revolucionário) revela: "(...) 1960-1964 marca o auge da luta de classes, quando esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu pelo caráter contrarrevolucionário preventivo. Houve a possibilidade de vencer, mas foi perdida. Mais grave é que foi perdida de maneira desmoralizante. Com a definição incontestável no dia 1º de abril, já no dia 3 a operação Brother Sam era desativada no Caribe. (...)"
Como o filme mostra, em 31 de março de 1964, a embaixada americana no Brasil enviou telegrama a Washington sugerindo o envio da frota ao Brasil. Não é preciso entender de navegação marítima para saber que levariam cerca 15 dias para chegar. Quem teria razão, Tavares ou Gorender?
Desembarcando na França pouco depois da queda de Jango, Carlos Lacerda foi anunciado como o "homem que já havia derrubado três presidentes". Encontrou a esperá-lo no aeroporto de Orly toda a imprensa francesa, inclusive TV, ao vivo: "Governador, qual a participação dos americanos na queda de João Goulart?". O governador Lacerda respondeu, em francês: "Nenhuma participação", garantiu. E continuou: "Quem os americanos libertaram foram os franceses, na II Grande Guerra. Americanos não sabem nada sobre derrubar presidentes. Eles matam os deles. O dia em que os americanos quiserem derrubar um presidente, terão de importar uma comissão de brasileiros para isso".
*Administrador, neto de Ildo Meneghetti