Na primeira vez que fui vacinada com uma seringa — enganada, pensando que seria uma gotinha — tive certeza de que jamais doaria sangue. Afinal de contas, tal ato exigiria a permanência cruel de uma agulha sob a minha pele, uma "tortura" que evitei ao longo dos meus dias; até a última sexta-feira (20). Sabendo da importância do ato, do impacto que ele tem — uma bolsa doada pode salvar até quatro vidas — deixei o medo de lado e entendi que nenhuma dor pode ser maior do que a disponibilidade em salvar vidas. Decidi que não esperaria algum familiar precisar para que eu partisse pra ação.
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Semana Nacional do Doador de Sangue motiva ações de incentivo ao ato solidário em Caxias do Sul
Sensibilizar doadores "de primeira viagem", como forma de ampliar o quadro de contatos e garantir o abastecimento mínimo necessário aos estoques, é um dos principais objetivos de campanhas como as alusivas ao Dia Nacional do Doador de Sangue, celebrado nesta quarta-feira (25). O movimento de conscientização, que sempre foi importante, tornou-se fundamental durante a pandemia, com o aumento da demanda paralelo à redução de doadores - ainda que os serviços de hemoterapia adotem todos os protocolos de segurança sanitária.
No Banco de Sangue de Caxias do Sul, que abastece hospitais de toda a região Nordeste do Estado, esses impactos também foram sentidos. Em uma variável contante, o estoque de bolsas O+, o meu tipo sanguíneo, chegou a ficar 80% abaixo do mínimo necessário na semana passada. A informação consolidou de vez a minha decisão de doar.
— Em um dia bom, realizamos cerca de 70 coletas, o ideal para mantermos os estoques. Infelizmente é algo que não estamos conseguindo manter, especialmente no início das semanas, quando este número cai para menos de 50%. Isso porque na segunda e na terça-feira ainda estamos ligando para os contatos já cadastrados, para agendar — afirma a gerente de captação do Banco de Sangue, Franciele Roso.
Segundo ela, o baixo comparecimento pode ter relação com o receio da covid-19, mas ocorre, sobretudo, devido às restrições que a própria doença causa. A gerente destaca que não existem evidências de que a transmissão do coronavírus ocorra por transfusão sanguínea, mas a suspeita/confirmação da doença e seus sintomas impedem a doação.
— A gente tenta incentivar o doador de primeira vez para ampliar o quadro de contatos e se sensibilizar da importância da doação, de tornar isso uma rotina. Durante a pandemia, estamos tomando todos os cuidados necessários para uma doação segura. Se todo mundo doasse uma vez por ano, a gente ia ter uma tranquilidade imensa — completa Franciele.
Segundo dados do Ministério da Saúde, a coleta de bolsas de sangue caiu 2,5% nos últimos quatro anos, embora a necessidade de transfusões tenha aumentado. O movimento de queda foi agravado pela pandemia e, agora, é confrontado com a retomada de inúmeros procedimentos cirúrgicos que estavam adiados. Algo que, segundo a gerente do Banco de Sangue, têm aumentado a demanda por estoque.
:: A doação de sangue durante a pandemia é incentivada pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e também pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
:: Conforme orientações do Banco de Sangue de Caxias do Sul, homens podem doar sangue até quatro vezes por ano, com intervalo de 60 dias entre cada doação. Já as mulheres podem doar três vezes ao ano, com intervalo de 90 dias.
Saiba como foram as etapas e protocolos para doação
O medo do contágio por coronavírus era bem menor que o da agulha, confesso, e foi rapidamente superado logo que cheguei à sede de coleta do Banco de Sangue, na Rua Garibaldi, 476, no Centro de Caxias do Sul, por volta das 8h20min. Os atendimentos ocorrem de segunda a sexta-feira, das 7h30min às 13h30min, e aos sábados, das 7h30min ao meio-dia, sendo agendados previamente, o que evita pontos de aglomeração.
Além da disponibilização de álcool gel em diversos ambientes, as atendentes da sala de espera contam com equipamentos de proteção individual (EPIs), em um atendimento humanizado que consegue transpor qualquer barreira acrílica. Retirei a senha e aguardei por menos de cinco minutos junto de outras sete ou oito pessoas, pelo primeiro atendimento. Ele ocorre na recepção, onde fui orientada a vestir os propés (sapatilhas descartáveis) fornecidos pelo estabelecimento, e preencher um breve formulário.
Esta é a chamada triagem básica, na qual alguns dos quesitos de aptidão para doação já são consultados. Conforme o Banco de Sangue, o índice de reprovação desta etapa é de 6,5%, sendo os principais motivos: tatuagem e/ou piercing feitos há menos de um ano e a administração de determinados medicamentos que inviabilizem a doação.
:: A partir da decisão de doar, é muito importante buscar previamente informações a respeito do que pode inviabilizar o ato, evitando ao máximo qualquer tipo de frustração ou contratempo logo na primeira etapa da triagem. Muitas questões são respondidas no próprio site do Banco de Sangue.
Foram dois ou três minutos até que me chamassem em outra sala, com atendimento individual para triagem hematológica. Nela, são avaliados os sinais vitais do doador, incluindo o teste de anemia que, felizmente, no Banco de Sangue é feito com aparelho que não perfura o dedo.
De lá fui encaminhada para uma terceira sala, desta vez a portas fechadas, para a terceira e última etapa da série de avaliações, na triagem clínica: uma entrevista feita por um médico ou médica que finalmente irá determinar se o doador está ou não apto. Fui atendida por Joana Susin Ferrari, que destacou a importância da sinceridade nas respostas.
— Todo sangue é testado, mas isso ocorre depois da coleta. A sinceridade nas respostas é muito importante não apenas para evitar que o sangue seja descartado por qualquer alteração que possa apresentar, mas pela segurança do paciente e do doador. Algumas inaptidões são transitórias e outras são definitivas, como a realização de determinadas cirurgias — destaca a médica.
O Banco de Sangue registra um índice de 5% de inaptidão detectada nesta etapa, sendo predominantes impedimentos relacionados a uso de determinados medicamentos e da relação sexual com múltiplos parceiros sem o uso de proteção.
:: Até meados de 2020, um homem que tivesse relação sexual com outro homem era impedido de doar sangue dentro do prazo de 12 meses após a relação sexual. A regra foi considerada inconstitucional e derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Desde julho, doadores homossexuais são submetidos aos mesmos protocolos aplicados aos doadores heterossexuais, sendo esta uma importante conquista na luta de igualdade travada pelo movimento LGBT+, assim como para quem eventualmente depender de uma transfusão de sangue para continuar vivendo.
Passei rapidamente pela sala onde é oferecido o lanche de reposição para o momento posterior à doação, com bolachinhas, sucos e diferentes opções de café. Mas, antes da "diversão", meu destino era a temida coleta. Na sala de quatro poltronas higienizadas, habitada pela atenciosa equipe de enfermagem, o nervosismo não teve muito espaço.
A televisão ligada mostrava, sem som, os acontecimentos da manhã embalados pela programação da Rádio Atlântida, algo que tornava o ambiente surpreendentemente agradável. Sentei entre duas doadoras, uma estreante, com quem compartilhei o anseio da primeira vez, e a outra veterana. Na tranquilidade de quem já doou muitas vezes, ela garantiu: "não dói". Virei o rosto para evitar qualquer tipo de náusea e, para minha surpresa, depois de uma ligeira ardência, não senti mais nada além da satisfação de estar ali, doando o meu sangue.
:: A quantidade de sangue coletado varia conforme o peso do doador, podendo ser de 400ml a 480ml. O peso mínimo para ser um doador é de 50 quilos. Sem revelar meu peso, posso dizer que doei a quantidade máxima, em um procedimento que durou cerca de oito minutos. Somando as triagens e a coleta, em si, o procedimento todo não chega a levar mais do que 30 minutos.
Enquanto removia a agulha, em um movimento rápido e preciso, a técnica de enfermagem revelou:
— A gente não conta que tirar a agulha é a parte mais dolorida.
Realmente, foi o primeiro desconforto durante o procedimento. Mas devo discordar que seja a maior dor, afinal de contas, só quem já arrancou um esparadrapo algumas horas depois de qualquer procedimento sanguíneo sabe qual foi, afinal de contas, a maior dor que eu senti nessa história toda. Uma insignificante barreira, é lógico, diante da grandiosidade que tem o ato de doar sangue, de salvar vidas. O único efeito colateral que tive, e que parece não querer ir embora, é a sensação de dever cumprido.
:: O agendamento para doação no Banco de Sangue de Caxias do Sul pode ser feito pelo telefone (54) 3027-8600 ou (54) 99113-4710.