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Cruzamento entre natureza e cultura, a paisagem está condicionada ao olhar humano e suas subjetividades, desde aquelas que deram origem às mitologias até as que justificam a troca do ar puro pelas abstrações do capital. Um paisagista, portanto, pelo menos em um plano ideal, é o profissional capaz de entender as dinâmicas relações do homem com a natureza, mantendo o compromisso com a beleza e a autenticidade para abrir ou restaurar espaços de contemplação e conexão com a Terra, cada vez mais ameaçada pelo desenvolvimentismo.
Carlos Fernando de Moura Delphim é esse tipo de paisagista. Entre seus feitos está a criação do Programa Jardins Históricos na Fundação Nacional Pró-Memória (1985-1990) e a criação do Jardim Botânico de Brasília. É autor do primeiro manual de intervenções em jardins históricos no Brasil. Aposentado de suas funções no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan-RJ), Delphim, esteve no Rio Grande do Sul a convite dos realizadores do projeto Paisagens Profundas, com recursos do Fundo de Apoio à Cultura (edital FAC Patrimônio) promovido pelo governo do Estado por meio da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac-RS).
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Ainda se recuperando de sequelas de covid-19 que o levaram a uma internação prolongada, Delphim percorreu a região dos Aparados da Serra com a equipe, coordenada pelo diretor e pesquisador André Costantin, e integrada ainda pelo diretor de fotografia e produtor executivo Daniel Herrera e a pesquisadora e produtora de campo Geni Onzi, a fim de contribuir com o seu olhar ao mesmo tempo técnico, científico e estético para as ações documentais. O resultado dessas primeiras incursões já se percebe pelas imagens reunidas nesta reportagem e os primeiros depoimentos de Delphim, impactado pelo percurso:
— Chegamos aqui e ficamos em êxtase, enlevados! Mas alguém pode ver com outro filtro, o do dinheiro, que é um deus hoje em dia, e a partir daí pensar na exploração. Perdemos a noção do sagrado, do divino, do lendário, do mítico... Estar aqui, ouvindo as histórias que ainda se conta, como a lenda do gritador, mexe de um jeito diferente com a gente, aciona os medos mais atávicos que, como cultura, fomos substituindo por certa onipotência. Perdemos, inclusive, o escuro, isso é terrível! Quando você tem a escuridão (como a da noite nos campos) pode projetar seus temores de dentro, elaborar um sentido. O mundo padece do excesso de luz das grandes cidades — reflete.
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Criação de acervo de livre acesso
Costantin explica que, diante das novas formas de uso e intervenções em curso, propõe-se a documentação e interpretação desses sítios em uma relação ecológica: homem e natureza.
— Há décadas, viajantes aportam à região dos Campos de Cima da Serra em busca de visões e sensações que remetem, simbolicamente, à aurora da humanidade, quando da formação da crosta da Terra. Talvez por isso, além da força expressiva de uma natureza única, os Aparados despertam tanta curiosidade. Embora sejam paisagens muito vistas e fotografadas, ainda demandam um olhar interpretativo, como patrimônio natural e cultural do nosso território — afirma.
O projeto vai sondar traços das culturas tradicionais da região, as marcas humanas, arquitetura, saberes e fazeres da casa e dos campos, contos e tradições orais, heranças etnográficas e novos usos dos territórios. Tais olhares resultarão em um parecer de livre abordagem sobre os sítios do Itaimbezinho e da Fortaleza, de autoria de Delphim, formando uma peça central para o conjunto de documentação.
A ideia é oferecer um legado simbólico para a região, acrescido de elementos de diagnóstico para ações de patrimonialização da paisagem dos Aparados da Serra. Os conteúdos irão integrar um site do projeto, com acervo de imagem e som, edição de filme-documentário e catálogo impresso, dando especial atenção às iconografias ainda existentes: fotografias de família, documentos, cartografias, entre outros.
— Como resultado transversal, este projeto pode aportar a valorização, o reconhecimento e a apropriação de elementos culturais e identitários pelas comunidades e pessoas envolvidas na região documentada — acrescenta Costantin.
Nos peraus da Serra
Autor de pareceres marcantes presentes publicados em Paisagens do Sul, como o diagnóstico do sítio de Porongos, onde houve o massacre dos lanceiros negros, em Pinheiro Machado; o parecer sobre a paisagem de São Miguel das Missões ou o espontâneo e não menos revelador ensaio sobre uma árvore da praça central de Pelotas, "A falsa castanha", Carlos Delphim foi um menino apaixonado por plantas. Desde a roseira onde depositaram seu coto umbilical até as flores que, temeroso das reações dos colegas, levava para a mãe no trajeto entre a escola e a casa, as delicadezas naturais sempre o inspiraram.
— Minha avó paterna era italiana e se chamava Catherina Flor. Meu sobrenome, Delphim, deriva do nome de uma flor, delphinium — conta.
Em um dia de campo para o projeto Paisagens Profundas, Delphim permite-se divagar sobre a experiência, passeando pelas ideias como quem percorre os jardins da memória, percebendo que em um conjunto de plantas mimetiza-se um universo inteiro:
— Aqui (nos Aparados), encontramos muitas plantas que se parecem com jardins em miniatura. Musgos semelhantes a coníferas, ou que lembram amplos gramados... A cada ser desses que se extingue, vão junto vidas minúsculas de plantas e insetos. Não nos damos conta do que perdemos com cada uma dessas extinções em termos de saberes e recursos para a sobrevivência na Terra — reflete.
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Arquiteto e paisagista formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Delphim foi técnico do Iphan e membro da Comissão de Patrimônio Mundial da Unesco. Trabalha com projetos e planejamento para manejo e preservação de sítios de valor paisagístico, histórico, natural, paleontológico e arqueológico. Amigo de Burle Marx (1909-1994), um dos pioneiros a reivindicar a conservação das florestas tropicais no Brasil, e atuou no tombamento do Sítio Burle Marx, no Rio de Janeiro, onde diz que ainda se sente a presença muito forte do artista: "o espírito do lugar".
Essa sensibilidade para captar a essência da memória na restauração e preservação das paisagens, Delphim aplica em suas primeiras reflexões sobre a região dos Aparados da Serra e seus cânions, que prefere chamar de "peraus", trazendo à tona a linguagem local. Da mesma forma, procura decifrar o sentido da palavra curicaca, do tupi-guarani (kuri, araucária; e akã, copa), enquanto ouve o murmurinho da ave nos pinhais ao redor da casa de fazenda.
Atento à beleza dos cercados em taipa que se harmonizam à vastidão do campo, mescla de saberes ancestrais com o uso de recursos disponíveis, identifica o potencial do uso de plantas locais no paisagismo, ainda tão padronizado pela opção por plantas exóticas, a partir de um ideário cultural subalterno. Se fosse ajardinar nos pampas, consideraria primeiramente o valor dos seus vazios:
— O belo da paisagem, acima de tudo, é o vazio — define.
Entre as plantas nativas que mais chamaram a atenção de Delphim nos arredores das fazendas estão as guneras, de folhas gigantes. Também destaca a beleza das criciúmas, taquaras de ramos compridos com tufos... E mesmo a carqueja lhe chama a atenção:
— Essa que vocês têm no Sul é linda, mais delicada do que a encontrada na região Sudeste. Por que não usá-las no jardim? Uma forma de proteger as plantas nativas é, justamente, o emprego delas no paisagismo. Foi assim que se ajudou a preservar muitas espécies. Os gaúchos precisam renovar seu olhar sobre o que têm aqui — salienta.
Em um contexto de ameaças ambientais, Delphim lamenta que os agrotóxicos estejam atacando diretamente as abelhas, essenciais na reprodução das plantas.
As tristezas se dissolvem no reencontro com a iberis, flor branca, miudinha, que reencontrou na visita aos Aparados. Com ela, lembra-se dos pareceres que executou para a inclusão de paisagens na Lista de Patrimônio Mundial da Unesco, entre elas, as florestas tropicais úmidas de Queensland, na Austrália.
— Pesquisei tudo sobre esse gênero de floresta na época, e meu parecer foi considerado. Muito me alegra a sensação de ter contribuído com cada uma dessas plantinhas de lá.