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Terno e camisa alinhados, em tons de cinza. Fala tranquila, mas convicta, e olhar atento. Sobre a mesa, uma pasta recheada de textos e anotações. Doutor em História da Arte pela Universidade do Estado de Nova York, Gaudêncio Fidelis recebeu a reportagem do Sete Dias na noite da última segunda (24), minutos antes de ser painelista do Órbita Literária, tradicional evento cultural promovido semanalmente pela livraria caxiense Do Arco da Velha.
Com mais de 50 trabalhos de curadoria no currículo, foi com a polêmica Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira que seu nome reverberou no cenário nacional. Com 223 obras de 84 artistas, a exposição sediada no espaço Santander Cultural, em Porto Alegre, foi fechada cerca de um mês antes do previsto após receber inúmeros ataques nas redes sociais. Grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) acusaram a mostra de fazer apologia à pedofilia e zoofilia. Um mês mais tarde, a exposição foi vetada do Museu de Arte do Rio (MAR) pelo prefeito Marcelo Crivella. A mostra só foi reaberta em agosto de 2018 na Escola de Artes Visuais Parque da Lage, também no Rio de Janeiro.
Em meia hora de bate-papo, Fidelis discorreu sobre o embate censura x liberdade criativa e comentou episódios polêmicos protagonizados recentemente em Caxias, além de relembrar as dezenas de ameaças de morte que recebeu após Queermuseu. Confira:
Sete Dias: Você tem defendido que estamos passando por um processo de mudança na maneira que nos relacionamos com a arte, a religião, a política. Que mudança é essa?
Gaudêncio Fidelis: É uma mudança muito dramática no nosso processo cognitivo, uma dessas coisas que talvez aconteçam a cada 100 anos. Essa constatação ficou muito clara para mim durante a Queermuseu, quando eu percebi que as pessoas tratavam as obras de arte como se elas fossem coisas vivas e pudessem cometer crimes e agir sobre as pessoas. Ouvíamos que a exposição tinha pedofilia, ou que pinturas cometiam toda sorte de crimes. Esse processo não acontece só com a arte: faço uma ressalva em relação às fake news. Na sua grande maioria, as pessoas sabem que estão lidando com fake news e, mesmo assim, aceitam como uma realidade. Consomem sabendo que é fake news, porque a maneira como nos relacionamos com o mundo mudou. Isso, sem dúvida, está relacionado à maneira como nos relacionamos com a tecnologia.
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Em Caxias, alguns casos recentes movimentaram a opinião pública: a proibição de que estudantes da rede municipal visitassem uma exposição por conter telas com nudez, uma polêmica alteração de obra exposta na Galeria Municipal e, há poucas semanas, a detenção de um artista enquanto grafitava em uma praça. Esses casos têm paralelo com a Queermuseu?
Tem dois aspectos que precisamos entender no que diz respeito a esses incidentes. Primeiro, é que eles são utilizados de maneira político-eleitoreira por lideranças de determinado perfil, que entenderam como esse processo funciona no imaginário social e fazem isso de forma nociva. Segundo, é que eles encontram receptividade em uma parcela considerável da população. Isso é assustador. Por outro lado, os setores mais progressistas da sociedade ainda não conseguiram entender como esse processo funciona para poder reagir. Quando esses ataques aconteceram, em Caxias e outros lugares, eles seguiram o mesmo manual da Queermuseu. Esses casos descortinaram uma grande campanha de pânico moral e ataques ao universo simbólico. É interessante observar que estamos numa crescente tendência fundamentalista.
Na sua opinião, esses ataques podem resultar em aumento de público ou até mesmo uma valorização histórica das obras?
Entendo a tua pergunta, mas é como se celebrássemos a tragédia. Nós não precisaríamos ter passado por esses ataques para que uma exposição de relevância fosse reconhecida ou para que um artista tivesse sua produção celebrada. Sei que muitas pessoas tentaram olhar a situação por uma ótica otimista, mas eu discordo. No fundo, o processo de criminalização da produção artística é infinitamente maior do que qualquer benefício que ele possa trazer. Atualmente, no Brasil, ser artista é desabonador.
Ano passado, em entrevista, você relatou ter recebido mais de 100 ameaças de morte após o polêmico fechamento da Queermuseu. Como você lidou com esse momento?
Inicialmente, foi bastante difícil e assustador. Precisei adotar medidas de segurança, porque alguns ataques realmente tinham concretude. Depois, (as ameaças) foram diminuindo. Evidentemente que eu sigo tomando algumas precauções. O que se percebe hoje é que ninguém está a salvo daquilo que passei. Na época, havia uma percepção de que os ataques eram um problema específico da exposição Queermuseu e do seu curador. Hoje, como adverti, esses ataques tomaram uma amplitude muito maior, alcançando as universidades e outras áreas.
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No início de junho, o Tribunal de Justiça do RS julgou inconstitucional a lei que previa classificação indicativa em eventos artísticos. Como avalia esse caso, tendo em vista que a lei foi votada após o caso Queermuseu e teve aprovação unânime na Assembleia?
É interessante, porque essa lei surge praticamente um mês depois do fechamento da Queermuseu, junto com um conjunto de leis em várias casas legislativas do país, basicamente cópia uma da outra, com forte campanha do MBL junto às lideranças políticas conservadoras para garantir aprovação. No Rio Grande do Sul, o que me chocou foi que essa lei tenha sido aprovada na transição de governo, no final do ano, e por unanimidade, inclusive pelos partidos de esquerda. Isso nos pegou de surpresa! O que posso dizer? Nos traíram? Desconsideraram a classe artística nas suas negociações? É impressionante e assustador. Agora, após grande mobilização da classe artística, a lei foi considerada inconstitucional pela Justiça.
Diante desse cenário, que recado você deixa para os artistas?
Que produzam mais. A produção artística nunca recuou diante de momentos adversos. Claro que o cenário ideal é que a produção tenha suporte e não seja atacada e demonizada a todo tempo. O que está acontecendo no Brasil, depois de um avanço democrático extraordinário nos últimos anos, é um recuo assustador. Os setores progressistas da sociedade precisam compreender o que está acontecendo para reagir. Precisamos estar na defesa contínua da democracia e da liberdade, pois elas não são perenes.