Tem dia que a alma acorda antes da gente. Vem arrastando o chinelo, com gosto de noite mal dormida, cheiro de café requentado e o peso de tudo que ficou entalado. Hoje foi desses. Levantei com a voz de Maria Bethânia cantando lá no fundo da ouvido: quem me leva os meus fantasmas?
Essa pergunta bateu em mim de um jeito estranho depois de ler sobre a Maria Schneider. Aquela atriz francesa, talentosa e belíssima, que foi despedaçada em cena no filme O Último Tango em Paris. Tinha só 19 anos. Tava começando a vida, cheia de sonhos, e foi traída por dois homens que achavam bonito filmar a dor alheia sem aviso. Era pra ser arte. Mas era abuso. E o mundo aplaudiu.
Maria foi pega de surpresa. Não sabia da cena. O diretor e o ator combinaram entre si que fariam com ela, sem ela saber. A câmera registrou seu choro verdadeiro. A dor dela virou espetáculo. E, por muito tempo, ninguém disse nada. Só ela gritou. Mas ninguém quis ouvir.
E é aí que dói. Porque essa história é dela, mas podia ser minha. Podia ser tua. É o mesmo silêncio que a gente engole desde menina. O mesmo abraço apertado demais, o olhar que pesa na nuca, o comentário que vem disfarçado de elogio. E a gente fica lá, duvidando de si, se perguntando se não exagerou. A verdade é que não. Nunca foi exagero. A gente aprendeu a calar. E calou por muito tempo. Mas não cala mais.
Hoje, Maria teria rede. Teria acolhimento. Teria hashtag, microfone, matilha. Hoje, quando uma grita, outras tantas se achegam. É bonito isso. É poderoso. Fantasma nenhum dá conta de tanto peito aberto junto. E não é só sobre denunciar. É sobre se reconhecer. É sobre olhar pra dor da outra e dizer: eu também. Eu também já me calei. Eu também já duvidei. Mas agora, não mais.
Aqui, nessa casa que também carrega seus sustos, eu boto lavanda nos cantos, defumo os traumas, acendo vela pro que já foi, rezo baixinho o nome de cada uma que veio antes. Deixo a porta entreaberta pras dores que ainda precisam sair. Porque a gente já entendeu que não é vergonha sentir, não é fraqueza lembrar, não é exagero falar. É libertação!
E se algum fantasma quiser voltar, que venha. Vai encontrar a mulher que me tornei, essa de punho firme, vestido florido, café no fogo, incenso na janela e a palavra pronta. Vai encontrar rede, reza, voz e soco. Porque agora eu não sou mais só. Sou nós. Somos muitas. Somos as que vieram antes, as que estão aqui e as que ainda vão chegar.
Maria, que antes chorou sozinha, hoje chora com a gente. Mas também sorri. Porque a arte que um dia rasgou, hoje é arma, é cura, é denúncia. A palavra é nossa. E quem tentou calar, agora escuta. Que escute bem. Que escute muito bem.