
Uma prosa bem Peixes, com cinema, fantasias, mitos e devaneios? Vambora. Para começar, você já assistiu Flow? Agora que o filme da Letônia venceu o Oscar de animação, espero que fique ainda um bom tempo em cartaz. É obrigatório. Sobretudo pela urgência de sua mensagem central — a superação dos antagonismos em prol da sobrevivência de todos. Também porque é um filme que encanta em igual medida crianças e adultos, com sua narrativa visual a dispensar falas, legendas e dublagens. Flow é uma fábula em que animais refugiados num mesmo barco durante uma inundação colossal nos dão lições preciosas sobre respeito e solidariedade. Nada mais necessário hoje!
O dilúvio é um tema universal associado a Peixes. Neste planeta ocupado em sua maior parte pelas águas oceânicas, vivemos a ilusão da separação em terra firme. No jargão psicológico, somos como ilhas de egos no mar do inconsciente. A dissolução pela grande inundação é tanto um temor quanto um anseio de retorno ao mundo primordial — ou melhor dizendo, espiritual. Peixes, o signo, vai nadando no limiar difuso entre o real e o sonho. Por isso o cinema é arte pisciana, por nos arrebatar pela emoção a outros universos na magia da sala escura. Por isso o Carnaval é festa pisciana, pelo que consente em caos e fantasia. São formas simbólicas de lidar com o temível e sedutor dilúvio que nos ronda.
Achei sensacional a revelação do Oscar de melhor filme internacional para o brasileiro Ainda Estou Aqui ocorrer em pleno domingo de Carnaval. Com direito a Fernanda Torres sendo tema de máscaras de foliões e até de boneco gigante de Olinda. Foi uma lavada, eu mesmo fui tomado por um choro emocionado, um choro não menos que cívico, por me sentir unido a um mar de gente em orgulho pela arte de nosso país. Com tanta aspereza por aí a nos separar, tanto extremismo a desunir irmãos e amigos, é para celebrar com alegria qualquer possível volta do humanismo perdido.
Depois do domingo de êxtase, a segunda-feira veio como na velha canção, com sua “manhã, tão bonita manhã”. “Voltou o sonho, então, ao coração”. Manhã de Carnaval, de Luís Bonfá e Antônio Maria, conquistou o mundo inteiro a partir do filme Orfeu Negro, de 1959, ganhador do Oscar de filme estrangeiro em 1960. Mesmo gravado no Rio de Janeiro, falado em português, com atores brasileiros, roteiro a partir da peça teatral de Vinicius de Moraes e trilha sonora deste com Tom Jobim, Orfeu Negro garantiu o Oscar não ao Brasil, mas à França, já que o diretor, Marcel Camus, e a produção eram franceses. “Tristeza não tem fim / Felicidade, sim”, soava outra famosa canção da trilha.
Vinicius adaptou à peça e ao filme o mito grego de Orfeu. A história de amor e tragédia em torno do músico e poeta que comovia até as pedras foi vertida para o ambiente de uma favela carioca em pleno Carnaval. Como no mito, Orfeu perde para a morte sua amada Eurídice. Na tristeza sem fim de viver sem ela, abraça o próprio sacrifício por uma reunião com seu amor noutro plano, alegoria de eternidade. É por transitar na fronteira entre mundos opostos e por envolver renúncias que o mito de Orfeu pode ser associado a Peixes e, mais ainda, ao seu planeta regente, Netuno.
Outra adaptação da peça chegou ao cinema pelas mãos de Cacá Diegues em Orfeu, filme que disputou pelo Brasil uma vaga na seleção ao Oscar, em 2000, sem sucesso. Um quarto de século depois, veio o ansiado Oscar, finalmente, desta vez pela saga real de uma mulher em busca do marido morto pelo governo ditatorial. A história no filme Ainda Estou Aqui – que comove até as pedras — é a de uma brava Eurídice que dedica a própria vida à luta pelo resgate da vida ceifada do homem que amava.
A tragédia foi terrível, mas Eurídice e Orfeu, ou melhor, Eunice e Rubens, estão vivos, eternizados mundo afora, luzes a inspirar. E a gente precisava de um Carnaval para bem louvar isso.