Com o Sol a iluminar as águas densas de Escorpião e Júpiter conjunto a Plutão, regente do signo, o veredito do julgamento de um caso de estupro, inocentando o acusado, chocou o Brasil. Tribunais à parte, o caso expôs um perigoso tabu social que pede atenta reflexão. Júpiter rege temas como justiça e padrões culturais; Plutão, temas como sexo e poder. Parece que, para além das pestes deste ano, 2020 também evidenciou o horror de uma silenciosa cultura do estupro. E a mitologia de Plutão lança luzes sobre o assunto.
No mito grego, Hades, ou Plutão, era o deus dos mortos e do mundo subterrâneo, onde vivia recluso. Ele até tentou cortejar algumas deusas, mas foi sempre rejeitado: nenhuma queria reinar entre almas penadas nas sombrias profundezas. Até que, tomado por um desejo ressentido e extremo, Plutão raptou a adolescente Coré, sua sobrinha, filha única de Deméter, a deusa da natureza. Versões do mito contam que Plutão consumou a violação da virgem Coré com um estupro. Ela foi então rebatizada de Perséfone, tornada à força esposa de Plutão. O que se seguiu foi uma longa e tensa luta de Deméter para resgatar a filha. O deus soberano Zeus (o Júpiter romano), pai de Coré e irmão de Plutão, foi chamado a julgar o caso. E criou-se uma trama novelesca.
Deméter descobriu que o juiz Zeus soubera da violação o tempo todo, mas tinha fechado os olhos para não contrariar seu poderoso irmão. Aí a deusa da natureza reagiu, condenando a terra à seca e gerando fome. Diante do caos iminente, Zeus negociou com Plutão: Perséfone ficaria com a mãe na primavera e no verão, quando a terra parece feliz e exuberante, e reinaria no subterrâneo, ao lado de Plutão, no outono e no inverno. Embora esse mito seja frequentemente interpretado à luz dos processos de desenvolvimento feminino, também podemos perceber nele os arranjos do poder patriarcal em substituição aos antigos ritos matriarcais. E, desde a antiguidade, sabemos bem que a história é contada em timbre masculino.
Em livro sobre o simbolismo de Plutão, a astróloga Donna Cunningham associa esse planeta regente dos nossos conteúdos sombrios também a abusos sexuais e estupros. Para ela, essas seriam as violências mais escondidas, já que a prática comum é atribuir à vítima responsabilidade pela agressão sofrida. Cunningham observa que o abuso sexual não brota de um natural desejo, que poderia ser satisfeito de outras maneiras, mas de uma “noção de poder distorcido”. Homens presos a uma expectativa social de dominação, quando diante de fracassos e frustrações, costumam abusar dos mais frágeis como forma de voltarem a se sentir poderosos. “As relações de poder entre os sexos estabelecem as condições para o abuso em nossa cultura e tornam-no proeminente”, diz ela.
Como no mito, em que a rejeição amorosa vivida por Plutão “justificou” para ele a violação, Cunningham liga os abusadores a prováveis agressões sofridas e guardadas. “Com o ato de violência, os molestadores liberam a cólera acumulada, agindo contra alguém que é impotente”, conclui. Também como no mito, o problema se agrava quando a justiça esbarra em ocultos conchavos de poderes. E a vítima segue sem voz. Felizmente, a fúria reativa do feminino, como a de Deméter, já conhece a potência do próprio grito. Na melhor vibração de Plutão, que o horror revelado se reverta em atitudes para uma curativa transformação. Se é mais difícil curar as noções distorcidas de poder, que ao menos a justiça não seja privilégio dos plutocratas.