Tarde de calor primaveril, pensei ter ouvido o canto de alguma cigarra. Assuntei da janela, mas o telefone me tirou da atenção aos matos dos fundos. Quando desliguei, já tinha esquecido da suposta cantoria desse mágico inseto que me fascina desde as tardes mormacentas dos sertões da minha infância baiana. E não é que agora, diante de um texto a escrever, o zizizi da provável cigarra vespertina ressurge! E insiste, e insiste. Diacho, a danada quer cantar aqui! Então, decido seguir as pistas desse som imaginário. Sob o Sol de Escorpião, é sempre rico desvendar a mensagem oculta em símbolos tão carregados de afeto.
Minha primeira associação é com um poema homônimo de Federico García Lorca. Vou ao livro. O poeta andaluz compara a morte da cigarra à humana, esta sempre pesada e triste: “Mas tu, cigarra encantada, / derramando som, morres / e ficas transfigurada / em som e azul celeste”. E deseja o poeta o destino de morrer de luz, como as cigarras: “E meu coração sobre o campo / seja rosado e doce limo, / onde cravem as enxadas / os cansados campesinos”. Lorca teve morte trágica, fuzilado pela brutal ditadura de Francisco Franco, em 1936. Seu corpo nunca foi localizado. Mas quem duvida da imortalidade desse poeta e dramaturgo que sempre amou e cantou o povo?
O geminiano Lorca nasceu com o Sol conjunto a Plutão e em oposição a Saturno. Vida e morte, paixão e repressão foram opostos comuns em sua obra, até ele ser vitimado pelo mais sombrio período da história espanhola. Atualmente, na sincronia do cosmos, quando Saturno e Plutão voltam a se conectar em trevas e insensatez, o cantar do coração do poeta ressurge e ressoa feito cigarra. Dias atrás, eu havia tido ganas de reler Lorca – daí eu lembrar logo do poema da cigarra. Não sei dizer se ouvi mesmo uma cigarra nessa tarde. Pode ter sido a viva voz do plutônico poeta, dublada pela natureza, a me avisar que, a despeito desse mau tempo, sempre virá a hora de a cigarra renascer e cantar o amor. Pois sua aguda vibração sonora é emitida pelo macho para atrair a fêmea – um canto de amor, portanto.
Deixo o Lorca, vou ao Google. Leio que as cigarras têm vida curta, se for comparar com o longo tempo – de um a 17 anos! – em que suas larvas ficam enterradas, maturando no escuro subsolo, nutridas pela seiva das raízes. No devido fim dessa aparente letargia, elas se desenterram e terminam a própria metamorfose num tronco de árvore, para viver, como adultas, somente por algumas semanas. Uma vida breve mas intensa, de cantoria e acasalamento. O mês de Escorpião é o auge desse ciclo na banda sul da Terra. Por isso, arrisco associar as cigarras ao misterioso signo de consciência das esperas e das necessárias transformações. A intensidade vibratória das cigarras parece corresponder ao longo tempo em que se prepararam para isso no escuro do chão.
Como símbolo escorpiano, cigarras sabem esperar sem desesperar. Instintivamente, sabem o momento certo de sair do chão e da casca, fortalecidas, para cumprir o propósito de cantar e celebrar a luz e o calor. E aí lembro da velha fábula, que enaltece o labor acumulativo das formigas e deprecia o canto vadio das cigarras. Que me perdoem os geniais Esopo e La Fontaine, mas, em dias de formigas tristes e ansiosas em seus buracos, a moral dessa história soa melhor se espelhar a graça de viver para cantar, como as cigarras, ao que nunca morre nem acaba: o amor, a luz, a vida como ela é. Celebremos, pois, amigos, o tempo das cigarras!