Sol brilhante em Escorpião, dediquei a manhã a um adiado trabalho: a limpeza e a poda das muitas plantas que ocupam a sacada do apartamento. Corta daqui, desbasta dali, revolve vasos acolá, juntei pilhas de folhas, galhos e raízes. Tão vistosa a lavanda florida, tão exuberante o gerânio, todo exibido o hortelã, mas tentei não ter pena de decepar de tudo um tanto, em prol da renovação e fortalecimento das plantas. Escorpião é isso: a poda a serviço do crescimento, a morte a serviço da vida. Sem que eu desse por conta na hora, tinha posto a rodar a Missa dos Quilombos, disco de Milton Nascimento de 1982, que eu não escutava havia muitos anos. Tocado pelas canções, com as unhas pretas de terra, de repente atinei: era o disco de um escorpiano, produzido quando Plutão, regente do signo, esteve conjunto a Saturno – como outra vez agora, em 2020! Hum, ali havia conexões a explorar...
Nessa evidência de Plutão, o deus da morte e também dos tesouros enterrados, tenho redescoberto diamantes finos nas minhas estantes de livros e discos. Como essa esquecida trilha da Missa dos Quilombos, apresentada pela primeira vez em novembro de 1981, em frente à mesma igreja do Recife em que a cabeça de Zumbi dos Palmares fora exposta em 1695. Isso li, já de mãos lavadas, no encarte do disco. É uma peça de denúncia e esperança em torno da dura situação dos negros no Brasil. Em certo trecho, canta o coro: “Estamos chegando das velhas senzalas, / estamos chegando das novas favelas, / das margens do mundo nós somos, / viemos dançar”. É o canto sincrético de um povo que luta pelo “Quilombo-Páscoa que o libertará”.
A ideia de uma missa cantada para os negros veio de dom Hélder Câmara, célebre arcebispo de Olinda e Recife, que muito lutou pelos direitos humanos nos anos da ditadura militar. Em uma potente invocação a Nossa Senhora, inserida no disco, dom Hélder alerta que aquela necessária aproximação da Igreja à causa dos negros, assim como as ações da Pastoral da Terra e da Pastoral dos Índios, seria vista como política, subversão ou comunismo, quando, na verdade, era apenas o “Evangelho de Cristo”. Dom Hélder prega um mundo “sem senhores e sem escravos, um mundo de irmãos”. E enfatiza: “Que se acabe, mas se acabe mesmo, a maldita fabricação de armas. O mundo precisa fabricar é paz”.
No entanto, naquele anterior encontro de Saturno e Plutão, a mensagem de fraternidade, justiça e paz da Missa dos Quilombos foi reprimida. A Censura Federal vetou a execução de quatro músicas do disco. Já o Vaticano proibiu a celebração da eucaristia associada a “reivindicação de qualquer grupo humano ou racial”, além de advertir os bispos envolvidos. Ah, em 1982, a palavra racismo foi pela primeira vez dicionarizada. Era como se não existisse isso antes.
Cortando para 2020, a nova conjunção de Saturno e Plutão reedita a violência autoritária contra a terra, contra o índio, contra o negro – e contra o pobre e os diferentes. São situações comuns a esses ciclos, que também fazem aflorar manifestações de resistência. Não é de estranhar que o comando da governamental Fundação Palmares tanto repudie a figura simbólica de Zumbi. Só que Zumbi vive! Quem está morto, e não sabe, é esse poder ressentido – zumbi em minúscula, sem coração, sem alma.
Sim, há trevas, mas, diante de meu jardim de plantas podadas, penso nos novos e luminosos brotos que as raízes estarão agora a nutrir no escuro da terra. Penso em novas abolições. Penso na lição de Escorpião: o que não nos mata, nos fortalece.