
Contrariando Belchior, vivo falando das coisas que aprendi nos discos. Não tem jeito: sou das canções. Elas mapearam e ainda mapeiam o meu mundo emocional. Agora, com o Sol iluminando as águas de Câncer, primeiro signo a nos conduzir ao reino das emoções e da memória, devo explorar as linguagens de acesso a esse universo misterioso. E como forma de arte mais imediata, a música popular é tanto trilha quanto trilho da alma. Canções são faróis e bússolas a nos guiar pelos caminhos de dentro. Discos (e os novos suportes) são como caixas de registros afetivos – enciclopédias sonoras de nossa educação sentimental.
Desde criança, antes mesmo que eu vivenciasse as humanas experiências de crescimento, já conhecia alguma canção sobre cada nuance desse processo. Alguém já havia sofrido aquilo e já havia vertido essa passagem em letra e música. Encontros e separações, alegrias e tormentos, esperanças e angústias: estava tudo lá, em imagens e metáforas que então me espelhavam e me traduziam. Havia desde a canção de pedir “volta, vem viver outra vez ao meu lado” até aquela de “pra todos os santos, vingança, vingança clamar”.
Milton Nascimento canta: “Certas canções que ouço / Cabem tão dentro de mim / Que perguntar carece / Como não fui eu que fiz?”. É bem assim que a coisa funciona, a gente se apropria da canção como se nossa fosse. Por conta disso, criamos empatia com o cantor, o cara que sente o que sentimos, conhecedor de nossa intimidade em seus detalhes tão pequenos. A voz do intérprete passa a ser a nossa própria voz. Com esta e outras vozes, vamos compondo um repertório temático das nossas vidas – nossa biografia musical, o hit parade do coração.
Em perspectiva histórica, podemos localizar na memória as peças de nossa trilha sonora particular. Algumas perdem o impacto original – e a gente até se pergunta como pôde um dia gostar delas. Outras permanecem relevantes, enlaçadas com as nuances complexas do nosso sentir. Seja como for, são peças do acervo sentimental, merecedoras de nosso respeito e consideração. São testemunhas de nosso crescimento – e também de nossos entraves e derrotas. Enfim, são artigos do nosso particular baú canceriano a compor o museu individual da nossa pessoa.
Dia desses, encontrei no YouTube uma seleção musical segundo o ano em que as músicas fizeram sucesso. Escolhi um certo ano e deixei tocar. Incrível! Eu conhecia quase todas. E um cinema transcendental foi se exibindo na tela da memória, encorpando de imagens a trilha em questão. Vieram lugares, pessoas, sensações. Senti saudade aqui, alívio ali, sentimentos autênticos na catarse musical. É assim que vamos definindo a qualidade dos registros sonoros, por suas associações com determinadas emoções.
Essa catarse musical se dá também no coletivo. Reportagem recente na Folha de S. Paulo anuncia: “Brasil é o país que mais passou a ouvir músicas tristes na quarentena”. Entre 34 países avaliados, o Brasil foi o que mais acessou nas plataformas sonoras canções tristes e mais antigas. Pois é, a alma brasileira está dolorida e saudosista, em sintonia com uma realidade igualmente sombria. Esse é um tempo de “meu mundo caiu”, quando ainda não aprendemos a levantar. Daí, vamos de choro, fossa, deprê. Ah, mas não diga que a canção está perdida! Que ninguém nos segure quando chegar o dia de bradar a plenos pulmões: “Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar a beleza de ser um eterno aprendiz”. Porque, assim como muda a Lua, sempre vem a hora de mudar o disco.