Sabe a canção A Banda, do geminiano Chico Buarque? Vivi algo dela, dias atrás, quando um evento inesperado me fez experimentar uma pequena epifania. Eu via tevê quando estrondou a música infantil A Galinha Magricela, hit da Turma do Balão Mágico lá pelos anos 1980 e que vazava a todo volume de um carro de som na rua. “A galinha magricela / Bota ovos sem parar”. Ri da música absurda e fiquei à espera da suposta propaganda de ovos bons e baratos. Mas o carro estacionou em frente ao meu pequeno prédio e ao enorme prédio em frente. E parado ficou, reverberando outras velhas músicas infantis. Nem por isso saí de minha poltrona e do meu filme, embora tenha percebido que janelas se abriam e que muita gente espiava do outro prédio. Até que um locutor se fez ouvir.
O homem saudou a plateia nas janelas, pediu aplausos para os profissionais da saúde que se arriscam nessa pandemia. E aplausos efusivos soaram. Empedernido em minha poltrona, incomodado em meu programa, resisti à curiosidade e não fui à sacada. Ouvi a voz do homem ressaltar que não fazia nenhuma propaganda. Só queria passar uma mensagem alegre nestes tempos difíceis. Falou em Deus, em fé, mas não citou nenhuma congregação. Pela proximidade da voz, percebi que ele já estava na rua. Aí meu lado jornalista se impôs, precisei conferir que zona era aquela. E fui olhar. De peruca rosa desgrenhada, dessas de palhaço, ele portava um microfone. Percebeu minha chegada à sacada e acenou. Retribuí timidamente, com o polegar para cima, ok, legal, bacana. De intimidades com um palhaço invasor! Pode isso?
A trilha mudou para Superfantástico, outra do Balão Mágico. O homem agitava os braços, animadíssimo, a plateia nos apartamentos acompanhava, no ritmo. Havia adultos, velhos, crianças e até cachorros. Alguns gravavam com o celular. Numa casa térrea, uma velhinha dançava como se aquela surpresa fosse somente para ela. De repente, já não havia casa em que não houvesse alguém a espiar o homem de peruca rosa. Ele voltou a pedir palmas para os médicos e enfermeiros, no que foi atendido com calor. E do carro ouviu-se Vamo Pulá, com a dupla Sandy & Júnior. Braços e cabeças fizeram jus ao refrão, quase se deslocando dos corpos. O homem no microfone agradeceu a atenção, desejou coisas boas a todos. Sob aplausos, entrou no carro e seguiu devagar pela rua de paralelepípedos, deixando atrás de si dezenas de corações pulando de leveza.
Voltei ao filme a que assistia antes, mas já estava noutra e desliguei a tevê. Só aí lembrei da canção do Chico Buarque. Sim, uma espécie de banda de um músico só havia passado na rua. Mas, ao menos falando por mim, nem tudo tomou seu lugar depois de o homem de peruca rosa passar. Para além da inusitada animação, ele deixara o exemplo de alguém que, dentro de suas possibilidades, quis levar alguma alegria a estranhos em meio a sóbrios isolamentos e tristes noticiários. Evocou em cada adulto sério a presença viva de uma criança lá dentro.
Aquele homem era uma personificação do Mercúrio mítico, imagem de Gêmeos: um vento ligeiro em forma de arteiro saltimbanco, espalhando graça e esperança. Não sei o seu nome nem o que faz da vida, sequer o reconheceria sem a peruca desgrenhada, mas aqui agradeço a ele por me lembrar que sempre podemos fazer algo que alivie as penas alheias. Ah, e como fazer isso nos deixa também mais leves! O safado só não precisava deixar grudado em minha cabeça o refrão “vamo pulá, vamo pulá, vamo pulá”.
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