Sem saber o que escrever, fui à janela. Deixei a mente solta, enquanto olhava lá fora a esmo. Logo uma borboleta chamou minha atenção. Amarela com estrias pretas. Veio vindo naquele voejar único, levíssimo e ondulante, e pousou numa folha do manacá. Depois noutra folha, e noutra, em cada uma juntando e abrindo as asas, numa sequência de repetições. E nem é mais tempo de flores, pensei, na crença comum de associar as borboletas apenas ao ciclo de polinização das plantas.
Fiquei um bom tempo olhando a borboleta amarela e preta. Como sabe ser hipnótico esse bichinho! Ou talvez seu fascínio já seja assegurado em nosso imaginário pela fantástica metamorfose por que passa a feia e pesada lagarta até chegar à fase de exuberante e delicadíssima borboleta. Esta representa em tudo o mistério da vida em seu aspecto mais milagroso e bonito. E no devaneio dessa ligeira conclusão, perdi de vista a borboleta! Busquei-a entre os galhos do manacá, e nada. Mas tudo bem: ela já tinha me dado o trampolim desta crônica.
Agora, evoco da mente sua função borboleta, perita em voar leve de flor em flor, de coisa em coisa, do tudo ao nada e vice-versa. Deixo-a fazer as conexões temáticas de pensamentos pelos fios da memória. Nessa tarde de janeiro, à luz do verão, a visão de uma borboleta também solar, pelo amarelo vivo de suas asas, fica emoldurada como uma das mais belas cenas do dia. Ou quem sabe a mais bela, pois importa muito reconhecer a grandeza daquilo que o poeta Manoel de Barros chamava de “desimportâncias”.
E a mente agora se agita em voos múltiplos, em zigue-zagues de lembranças. Revejo no céu da cabeça uma placa onde se lê: “as melhores coisas da vida não são coisas”. Ouço minha sobrinha contar do hábito que criou com sua filhota de dois anos, de a cada noite, já na cama, destacar o melhor do dia. E imagino o sono tranquilo da doce Marina depois de depurar de cada dia o que a deixou feliz: um passeio, um encontro, uma fruta madura, uma graça qualquer. Precisamos reaprender a dar valor às miudezas que alegram nosso coração.
Não podemos ir dormir acalentados apenas pela ânsia do que pode nos trazer alguma alegria no amanhã. Viver não pode ser um verbo a se conjugar somente no futuro. Cabe atentar ao agora, ao que já temos – por pouco que seja –, ao que já somos – ainda que humildes. Sei, o mundo forjado na frieza do capital e do acúmulo não nos quer satisfeitos, mas sempre reféns de faltas e carências. É aquele negócio: a economia precisa girar, e precisamos consumir, e ter, ter mais, ter tudo. Assim, somos treinados na cartilha de vorazes lagartas já desvirtuadas do que possa ser a condição de borboletas.
Seguindo as associações animais, lembro da velha fábula da minhoca que certa vez viu uma serpente a dormir. Encantada com o porte da serpente, a minhoca quis imitá-la e deu de esticar-se ao máximo. Precisava se tornar grande, enorme. E de tanto forçar o próprio corpo, terminou morta, aos pedaços.
É por aí: algo vital se arrebenta em nós sempre que forçamos nossa medida natural. Algo essencial se perde todo dia com nosso contínuo esforço para ser o que ainda não somos e, enfim, ter alguma paz. Imagine, então, viver num mundo em que formas e situações ideais viram irresistíveis mercadorias...
Nada contra o que possa dar forças a qualquer pessoa para levantar amanhã e seguir lutando na vida. Nada contra o que seja puramente material. Mesmo a borboleta que me inspirou a essas conjecturas algo metafísicas, ela pousava nas folhas do manacá não para exibir qualquer conotação espiritual superior por suas asas, mas unicamente para comer. Só precisamos achar o ponto certo de nossas fomes e desejos e ânsias, para não perdermos o valor do que não sejam coisas.
Bem, essa viagem mental foi somente o efeito de uma mera borboleta que se alçou à melhor imagem do meu dia, tornando-o especial por isso.