Para grande parte dos astrólogos, Aquário é o signo ascendente do Brasil, aquele que surgia no horizonte na hora do famoso Grito do Ipiranga. Aquário é também o signo da cidade de São Paulo, que aniversaria neste sábado. Seria São Paulo a cara mais possível de um país de sonhos de futuro, diversidades culturais, modernidades e progressos, bem ao gosto aquariano? Seria também “o avesso do avesso”, sob a “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como na velha canção? A que país essa cidade hoje aponta? Para reflexão, pincei aqui três impressões sobre São Paulo, registradas no livro Jeitos de Ser Brasil, de 2012, com textos meus e aquarelas de Antonio Giacomin.
Cena 1. “‘Aqui, sob a cruz de Cristo, nasceu esta cidade dedicada ao apóstolo Paulo pelos jesuítas padre Manuel da Nóbrega e o irmão José de Anchieta, entre outros. 25 de janeiro, A.D. 1554’. Estou no Pátio do Colégio, edificação fundadora da cidade de São Paulo. Um osso do fêmur e o manto do padre Anchieta estão expostos ali, em vitrines de vidro. Numa das salas, dezenas de crianças uniformizadas e sentadas no chão ouvem do professor a história da fundação da cidade. O mestre reforça o tom de aventura da façanha: as dificuldades dos padres jesuítas na educação e catequese dos indígenas, no litoral; a opção por subir a íngreme muralha natural da Serra do Mar até a região do planalto, onde havia dois rios, o Anhangabaú e o Tamanduateí; o auxílio fundamental do amistoso cacique Tibiriçá, chefe da tribo dos guaianás; a construção modesta do colégio, o ataque de tribos hostis e o surgimento da vila onde hoje se agita a maior cidade da América do Sul. Lá fora, o trânsito e a pressa do centro paulistano fazem jus à condição de metrópole sempre com um futuro a perseguir”.
Cena 2. “Um som de marteladas em metal desperta-me. São 05h06min, noite ainda na Rua Santa Ifigênia, centro paulistano. Do alto do quarto de hotel, confiro a origem do barulho: lá embaixo, homens trabalham num bueiro. Bem perto, na calçada, um rapaz deitado no batente de uma loja também acorda. Sem ficar de pé, tira a calça plástica de abrigo que vestia sobre o jeans, dobra calmamente o cobertor e o lençol que forrava o papelão no chão e enfia tudo nas duas bolsas que antes serviam de travesseiro. Recosta-se, então, nas bolsas, acende um cigarro e fita o amanhecer. Não transparece em seu rosto contemplativo a real miséria de quem não tem um teto para dormir, mas a aceitação confiante de que essa é a vida que lhe cabe, ao menos por enquanto, na maior cidade do Brasil. Ao fim do cigarro, o dia já clareia, e o rapaz se vai, com suas duas bolsas talvez infladas de esperança. Na noite seguinte, outro corpo já ocupa o mesmo batente. Uma mulher. Mas dessa eu não vejo a face. Apenas sua silhueta deitada, invisível aos passantes da madrugada. Imóvel, sem identidade, quiçá sem esperança”.
Cena 3. “Mesmo sob o sol forte, não falta gente para se consultar nos oráculos à borda do Viaduto do Chá, centro da cidade. São cartas ciganas, tarô ou búzios. O cliente pode se agachar sob um improvisado guarda-sol ou sentar-se num pequeno banco, ao lado do consultor paramentado conforme a linha de atuação. No fim da tarde, o movimento aumenta, chegam vários outros magos. Trânsito veloz lá embaixo, marcha apressada de pedestres ao lado, faces sérias de consulentes ouvindo indicações de futuro, promessas de amor, saúde e emprego. Viadutos são vidas em travessias. Não muito longe, na japonesa Praça da Liberdade, há também oráculos ambulantes, em frente a uma loja de artigos de umbanda. Vejo ali uma curiosa mediação: uma cigana loura e robusta lê as cartas para uma idosa japonesa, mas fala em português para um rapaz, que traduz a mensagem, em japonês, para a idosa. Não importa a cultura, gente é tudo igual. Todo mundo precisa de alguma luz, venha como vier”.