Dorme, dorme, assustada criança. Apesar desse medo que se alastra pelo ar, ainda cabe entregar-se ao sono e ao sonho. Resta uma última semana de Peixes, os últimos dias deste ano astrológico, antes que o Sol chegue ao signo do carneiro e comece tudo de novo. Porque assim é a vida, na dança de nosso planeta ao redor dessa estrela que nos dá luz e calor. Tudo chega, tudo dura um tempo e tudo finda. Esse céu escuro passará, minha criança. Dorme tranquila, como a pureza do que deve ser preservado.
Dorme, dorme, jovem tristonho. Passarão essa angústia no peito e essa desesperança no amanhã. Passará essa raiva pelo que os famintos de poder fizeram com o mundo, roubando-te o ar, o verde, a saúde, o futuro. Faz de tua raiva combustível para um bom combate. Cria com os amigos redes de partilhas de ideias e atitudes que resgatem com alegria esse amanhã ameaçado. Evita a armadilha de dividir e segregar como fazem os insanos. A força, meu caro jovem, está no modo como vais reinventar a solidariedade e o zelo. Por ora, apenas aquiete o coração.
Dorme, dorme, companheiro adulto. Cochila, ainda que brevemente, em busca de algum sonho que te revele saídas desse sono outro que te acomete, tão perigoso. Faz tempo que já não diferencias sono e vigília. Padeces com as insônias de uma mente ansiosa, embotada de ódios, enquanto dormes fundo no torpor de seguir manadas ou de esperar por salvações messiânicas. Acorda, irmão! Ajusta o foco, limpa as lentes! Nesses últimos dias de Peixes, final do ano cósmico, urge saber o que deve ficar para trás, o que te submete e desumaniza. E urge saber o que deves levar sempre contigo, como condição do ser.
Crianças, jovens, adultos: urge entregarmo-nos a um sono breve que nos una a todos no éter do puro espírito. Um sono que alimente sem entorpecer, que nos devolva os sonhos roubados e a esperança no futuro. Sim, o céu é ameaçador e suas sombras assustam nossos dias. Mas tudo passará, tão certo quanto a entrega de Peixes antecede as lutas de Áries. Para que esse sono curativo chegue, e nos desperte para o real, reconto aqui, à guisa de acalanto, uma historinha, já não sei se lida ou ouvida, que tem tudo a ver com o que devemos levar de Peixes.
Certa feita, dois camponeses foram surpreendidos por uma violenta tempestade de inverno quando buscavam alimentos num campo distante da aldeia. O frio de rachar trouxe a neve. Para sobreviver na caminhada, os homens, já idosos, tiveram que abandonar os cestos de alimentos. De repente, na beira da trilha, um choro de criança se fez ouvir. Era de um bebê, que se debatia sobre o corpo sem vida de uma mulher. Um dos homens logo resmungou que nada havia a fazer. Se levassem a criança, não teriam forças para chegar vivos à aldeia. Morreriam, como a pobre mãe do bebê. Mas o outro homem não concordou com esse argumento. E carregou a criança consigo, apertando-a junto ao peito.
Contrariado, o primeiro homem adiantou o passo e seguiu sozinho, à frente. O outro andou cambaleando pela trilha escura, agora com aquela imprevista carga. Horas depois, chegou à aldeia, no limite das forças, com o bebê também vivo. Como por milagre, o contato com o corpo da criança gerou o calor que ajudou a ambos sobreviver ao frio. Já o amigo não chegara à aldeia. No dia seguinte, seu corpo foi encontrado, congelado, à beira do caminho.
E assim Peixes antecipa os desafios arianos que virão, lembrando de nossa fundamental essência humana.
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