Há momentos em que o ser humano se aproxima do divino. É quando ele tem a capacidade de se transformar em algo além de si mesmo. Paralisados por tantas prisões impostas pela mente, muitas vezes desistimos de ultrapassar esse limite. Encolhemo-nos, entregues à exaustão que nos domina, esquecidos da possibilidade de romper com o que causa a dor. Nem sempre nos damos conta de que somos vítimas e a falta de vontade é o início de uma passividade estéril, incontornável em muitos casos.
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Para evitar isso, procuro não me sentir subjugado por nada. Provavelmente essa é a razão pela qual nunca fui seduzido pelo jogo, álcool ou cigarro. Sem esquecer que as grades que nos oprimem podem se apresentar de maneira bem mais agradável: sexo ou comida, por exemplo. Pouco importa. O fato é que tudo o que escapa do nosso controle é nocivo ao crescimento pessoal. Para manter a saúde psíquica é preciso atenção permanente, pois somos tentados o tempo todo. Diversão não significa entregar-se desenfreadamente, até perder a consciência. Todo extremo flerta com a patologia. Experimentar sim, lembrando que entorpecer-se nos impede de sentir o gosto do que nos nutre.
À luz da psicologia, poderíamos traduzir isso como a incapacidade de controlar os instintos. De deixar aflorar em nós o que há de mais primitivo, animal. Muitos se recusam a isso para não serem taxados de caretas. Transgridem mais como um exercício de exibicionismo do que por acreditar mesmo nesse tipo de conduta. E, ao se deixarem levar, se transformarão num alvo fácil. Sempre tentei evitar os comportamentos aprovados pelo coletivo, mesmo que isso significasse ser expulso de algum grupo. O preço cobrado pode ser alto, principalmente para os adolescentes, época em que copiar um modelo é vital para ser aceito. Creio que minha resistência foi mais intuitiva do que pensada. Chego a esta idade liberto de vários grilhões mais por sorte do que por merecimento. Por vezes desci alguns degraus, mas em todas dei-me conta do que estava fazendo e rapidamente recuperei a consciência. Compreendo que tolice é permanecer perto do abismo até perder o equilíbrio e cair. Persisto em manter-me afastado de qualquer excesso. Grandes bocadas matam a fome, mas anestesiam o paladar. E provocam enjoos. Como tudo na vida, o que é sorvido aos poucos costuma gerar mais prazer.
Por outro lado, poupar-se em excesso pode causar uma espécie de anemia na alma. Correr pequenos riscos é saudável e nos torna mais fortes. Mas sem perder as rédeas. O bom condutor só se aventura depois de estudar o caminho que irá percorrer. Pensando no imenso gosto que nutro pela vida, não quero desperdiçar essa chance que me é oferecida. Troco qualquer êxtase momentâneo pela serenidade que sinto hoje. Talvez eu tenha provado menos do que poderia e deveria. Mas colho estes frutos maduros sem precisar arrancar os galhos da árvore, destruindo-a. Continuo saboreando o que a minha natureza oferece em estado puro.