Dois grandes amigos gastam precioso tempo postando nas redes sociais opiniões inflamadas sobre os políticos que admiram e que odeiam. Suas palavras não vêm mescladas a nenhum exercício de bom senso. Amam e detestam em igual intensidade, cegamente. Ignoram que defeitos e virtudes são como a flor de lótus que nasce em meio ao lodo: beleza e fealdade se confundem. Isso é o humano em essência. Mas não, querem a pureza e o heroísmo que sempre foi rarefeito, quase inexistente. Recuso-me a discutir esse tema com os dois. Gosto deles demais para deixar morrer o que alimenta nosso relacionamento. Até porque o alvo de suas defesas ou ataques não mobiliza mais em mim o respeito de outrora. Não ergo bandeiras, não troco a tolerância por causa alguma. Mas eles insistem e eu, contendo a vontade de responder, faço do silêncio um amparo contundente. Falo de arte, de ciência e filosofia, assuntos que me parecem bem mais apaixonantes. E assim seguimos lado a lado, num bem-querer que não se deixa contaminar por essas polarizações tão doentias que andam ocupando até as conversas mais ligeiras.
Essa raiva do que difere de nosso pensamento refestela-se no universo das igrejas, hoje como sempre. Leio que o pastor e cantor evangélico Kleber Lucas está sendo achincalhado publicamente por ter se engajado na reconstrução de um centro de candomblé incendiado por um grupo de sectários que não admite que outros professem crença diferente da sua. Num dos atos que me parece, esse sim, profundamente religioso, uniu-se a outros líderes (inclusive a um midiático padre católico) e começou uma campanha para angariar fundos. Foi o que bastou para ver os convites para shows minguarem, além de não ser mais tocado nas rádios e receber todo tipo de xingamento via internet. A mensagem mais recorrente nesses novos tempos parece ser essa: não dialogue. Todos sonham com um mundo monocromático, desinteressante, em que possam ancorar sem discussões verdades que não passam de meras opiniões. Muitas vezes protegidos pelo anonimato, promovem bravatas e incitam ao terror verbal quando poderiam aproveitar a oportunidade para rever os próprios preconceitos. Prefiro continuar cultivando meu jardim.
Não tenho certeza se esse radicalismo pode ser considerado uma novidade. Creio que ele só se tornou mais manifesto pela oportunidade de todos dizerem o que pensam sem sofrer sanções. É um dos efeitos desagradáveis da democracia, que continua sendo, no entanto, o mais aceitável sistema de governo. O futuro dirá até onde estes extremismos nos conduzirão. Também tenho minhas preferências, embora pareça cada dia mais difícil encontrar um ramo de trigo nestas vastas plantações de joio. Questionar sempre, praticando o método socrático da dúvida, parece ser, ainda e sempre, a melhor maneira de conduzir a vida. Tudo é breve, fugidio. Empenhemos a vontade em algo mais nobre. Enfraqueceremos aquilo que, sem saber, nos torna reféns.
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