Há muito o que denunciar, mas também há muito o que comemorar. Refiro-me ao secular processo de violência e domínio a que as mulheres foram submetidas ao longo dos tempos. Raras foram as sociedades que não as oprimiram. Mais raros ainda os homens que conseguiram vê-las como iguais, seres com quem se deve caminhar vida afora em termos de absoluta igualdade, pois não há evidência alguma que as torne inferiores a nós. Tudo é cultural e passa pelo filtro dos preconceitos de cada época. Felizmente, algumas vozes ousaram e se fizeram ouvir, mostrando o que parece evidente a quem pensa a vida como um exercício de encontro e partilha. Muitas pagaram com a própria existência a ousadia de dizer o óbvio. Não se conformaram em ter que esconder talentos e capacidades que não devem ser solapados pela ignorância e desejo de mando. São figuras emblemáticas que, a despeito de terem deixado marcas indeléveis com seus feitos, ainda continuam ocupando uma nota de rodapé no livro da humanidade. O olhar masculino não tolera a ideia de dividir espaço com elas. Prefere continuar usando a força física – único atributo em que levamos determinadas vantagens – do que estabelecer qualquer forma de diálogo.
Reflito sobre essa questão a propósito do excelente documentário “Chega de Fiu Fiu” dirigido por Amanda Kamanchek Lemos e Fernanda Frazão. A questão do assédio sexual é discutida por quem sofreu na carne esse tipo de agressão. Por meio de depoimentos de representantes de diversas classes socais, discute-se o que, numa sociedade minimamente civilizada, já deveria ter sido superado: poder se portar e vestir do jeito que quiserem. Sem meias palavras, a maioria delas revela que, se agissem assim, seriam consideradas vagabundas, sem valor algum. Ou fáceis demais para servir ao modelo de esposa que está no imaginário coletivo. Promovemos um evento para discutir o assunto e convidamos uma advogada, uma intelectual que se dedica a estudar a questão de gênero e uma travesti militante. Três vozes poderosas cujas palavras encontravam total ressonância junto ao público. Obviamente, formado quase que só pelo sexo feminino. Nesse quesito, predisposição e coragem para debater essa pauta não parecem ser o nosso forte. Ao final, uma constatação: muito se avançou, mas as estatísticas revelam um quadro de continuadas agressões, tanto de ordem verbal quanto física.
E assim, celebrando esses pequenos avanços, nasce um tênue fio de esperança: chegará o dia em que não será mais preciso colocar em pauta o tema por já ter sido superado. O princípio de um mundo onde a hierarquia não se estabeleça a partir do sexo ao qual se pertence deveria ser comemorado por todos. Até porque oprimir constantemente deve gerar um desgaste psíquico tremendo. De burca ou shortinho, caladas ou falando em púlpitos, realizando atividades domésticas ou em cargos de direção – elas apenas desejam se expressar. Um direito que, enganosamente, acreditamos ser de quem limpa com sangue e palavras de baixo calão uma honra que se confunde com o medo e a covardia.