Acredito que uma vida boa, que vai se gastando com serenidade, prescinde de tudo que é complexo. Ando encantado com o tanto de poesia que se pode extrair do que parece apenas banal. O que significa para mim um dia feliz? Levantar as persianas da janela do quarto e espirar uma nesga de céu. Qualquer paisagem me interessa. Encantam-me as fantasmagorias que a neblina vai tecendo nos vales, da mesma maneira que o sol incandescente é um convite a luxúrias da alma e do corpo.
Uma xícara de café com leite, uma caminhada pelo jardim. Escolher os ingredientes para o almoço. Enquanto é preparado, ouvir música, conversar com quem estiver ao meu lado, partilhar a refeição e agradecer. E que a tarde siga com suas amplas possibilidades, essa antessala bonita para a noite, quando, cansados, queremos apenas repousar na maciez de uma poltrona, vestindo um velho pijama, ouvindo uma voz amada. Ler algumas páginas de um romance e, na mansidão dos minutos que precedem o sono, lembrar de versos que nos são caros e nos ajudaram a atravessar horas de dor e prazer.
É apenas disso que preciso. E já é bastante, pois sem aviso prévio podemos ser surpreendidos com a perda de tudo. Não valerá então a pena entoar esse cântico de louvor ao que tremula na claridade dos dias? Mas, neste roteiro de pequenas felicidades, não posso deixar de mencionar o quanto aprecio preparar um bolo. É um modesto ritual de sábado que sempre me emociona. Juntar farinha, ovos, açúcar, manteiga, fermento e especiarias. Levar ao forno e esperar. Ah, a deliciosa expectativa de não saber se dará certo, se cresceu ou ficou abatumado. Não importa o quanto eu já tenha testado a mesma receita. É sempre com a surpresa da primeira vez que realizo este ato. E que alegria suprema é a partilha com os amigos, sentados ao redor de uma mesa, falando de algo que pode não ter grande importância para a ordem do mundo, mas que espalha ao nosso redor a segurança dos pequenos gestos e aí encontram sua beleza na repetição. E, para sofisticar um pouco, faço pesquisa em livros e sites e me desafio para encontrar sabores mais complexos. Quando o bolo sai fumegante do forno, sinto um contentamento que já imaginava perdido lá na infância. Autorizo-me a discretas doses de exibição.
Há tanta filosofia a ser aprendida na trivialidade, no que repousa escondido longe das manchetes. É como receber um abraço que se prolonga e parece não ter fim. Uma sensação de pureza, de banho recém tomado, de água bebida na concha da mão. É preciso dizer isso dez, cinquenta vezes: o coração das coisas é um elo que se perdeu quando adotamos a ideia de grandes feitos para honrar a nós mesmos. Deve-se progredir, é certo, mas lembrando de armazenar a beleza das ações modestas. Podemos nos sentir satisfeitos sem sair da própria casa.
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