Se você, como eu, acha que o mundo anda sofrendo de excesso de realidade, sugiro um remédio eficaz, de efeito absolutamente garantido: assistir à série Anne with An "e", disponível na Netflix. É um dos mais belos e poéticos convites para permitir que nossa imaginação volte a ocupar o lugar que merece. Baseado no romance Anne de Green Gable, da canadense L. M. Montgomery, escrito no início do século passado, tornou-se um clássico e vendeu mais de 50 milhões de exemplares.
É a história de uma menina órfã que, por engano, é enviada a uma fazenda onde dois irmãos solteirões, Marilla e Mathew – meio ranzinzas, meio simpáticos – esperam receber um garoto para adoção. A partir daí, com direito a flashbacks de sua sofrida infância, são narradas as mil aventuras dessa fascinante personagem que cria infinitos universos para ampliar o que o cotidiano num pequeno vilarejo não lhe oferece. Mas nada disso supera o prazer de ver a atuação da atriz Amybeth McNulty, impagável em sua verborragia e capacidade de extrair beleza do mais prosaico ato. Ela é uma explosão de expressões de maravilhamento, deslumbrando-se com tudo o que descobre ao seu redor.
Esse pode ser um bom início para transferir a si mesmo a capacidade de sobrepor camadas de fantasia quando há doses de pragmatismo, de objetividade. Estamos cada vez mais inclinados a crer somente no que é palpável, destinando aos lunáticos e aos sonhadores essas quimeras tão "inúteis". Mal sabem esses arautos da eficiência que são justamente os suspiros que mantêm viva a consciência de todas as possibilidades que existem. Bastar-se com o que os olhos veem é insuficiente. Precisamos garimpar em nossa mente algo que ultrapasse o ordinário. Para tanto, nem sempre é preciso fazer longas viagens e muito menos conhecer países exóticos. O que nos é exigido é tão somente o esforço de transformar o que já não percebemos pela repetição em algo inédito, mais colorido, mais pulsante. Comprometidos com o lema positivista de progresso, mal nos damos conta que podemos avançar recuando, encolhendo-se. Ou, sem o medo de resvalar num lugar comum, garimpando a criança que está escondida em algum lugar dentro de nós. Não me senti com mais de sete, oito anos, toda vez que vibrei com uma das cenas exibidas. Foi como se me tivessem milagrosamente roubado décadas e mais décadas de experiência. Esta última palavra, aliás, demasiadamente cultuada. Afinal, existe algo mais sedutor do que entregar-se ao desconhecido, com uma saudável dose de insegurança? Ah, e não tenha pudor em chorar. Muitos momentos exigirão isso de sua sensibilidade.
Se conseguir preservar essa doçura, esse entusiasmo que encontrei em Anne, pressinto estar destinado a me tornar um homem melhor. Já ando bem contente por descobrir o meu talento em permanecer longo tempo sem fazer nada. Se a esse dom de observação eu aliar alguma dose de fantasia, gastando horas no mais puro devaneio, corro o risco de me apaixonar por mim mesmo. E existirá relação mais desejável?
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