As nuvens plúmbeas do céu anunciavam uma chuva que, afinal, não veio. Alguns jasmins tardios insistiam em perfumar a tarde. O silêncio parecia formar uma espessa parede que nos protegia dos acontecimentos do mundo. Em espaços intervalados de tempo, os cães olhavam para o horizonte e latiam para o que não éramos capazes de ver. Eu, minha irmã e a querida amiga Rache nos entregávamos à perfeição do momento. O passado não era incômodo e nos afastamos da ansiedade do futuro. Conversas ligeiras preenchiam o dia. Súbito, um de nós lembrou: e se fizéssemos os deliciosos pãezinhos de nata da dona Vera? Num instante o torpor do corpo nos abandonou e lá fomos para a cozinha. Diante da janela aberta, folhagens coloridas faziam o cenário perfeito para o que se revelava igualmente perfeito: o exercício de nutrir o corpo quando a alma se encontra aquietada, longe da sofreguidão dos desejos que aniquilam a serenidade.
Ingredientes postos à nossa frente e lá fomos nós preparar a saborosa receita: 1 xícara de nata; 1 ovo; 1 colher de sopa de fermento Royal; 1 pitada de sal, 3 colheres de sopa de açúcar; farinha de trigo para amassar. Misture os ingredientes acrescentando a farinha aos poucos, até formar uma massa consistente. Por fim, coloque o fermento. Corte pequenas tiras, arredonde-as com as mãos e achate-as com as palmas sobre uma superfície polvilhada de farinha. Enrole os pães e coloque-os em uma forma untada com manteiga. Cozinhe-os em fogo médio até atingirem um delicado tom pastel.
A mesa posta, a comida fumegante, uma taça de café com leite e eis-nos instalados no próprio paraíso. Não pude deixar de refletir como seria bom se também tivéssemos à nossa disposição outro tipo de receita, a que nos conduz à felicidade. Mas logo essa pretensão cedeu espaço a algo mais modesto, como o de usufruir plenamente o que estávamos vivenciando. De tudo que experimentei e li ao longo de tantos anos, restou-me esta certeza: a sabedoria consiste em não querer estar em outro lugar e nem idealizar-se diverso do que se é. Eis aí o grande perigo, a sedução a nos tentar tantas vezes. Pois hoje nutro-me dessa verdade: outra geografia não me faria mais contente, da mesma maneira que amores sonhados ou posses ansiadas apenas deslocariam o objeto para algo inalcançável. Os filósofos estoicos me ensinaram a não romper os limites da saciedade. O contentamento deve repousar sobre o que temos e usufruímos, almejando o máximo de permanência em um mundo que se abastece de nascimentos e despedidas. A gratidão pelo corpo e pela consciência, os abraços distribuídos com generosidade, a capacidade de continuar admirando o que está sob nossos olhos, dia após dia.
Poesia. Saúde. Alimento e abrigo. A passagem dos anos sentida não como um fardo, mas um véu que nos protege de inúteis tormentos. A voz dos seres amados que a morte não conseguiu nos roubar. Crianças enchendo de alaridos os pátios da memória. O que brota e amadurece. O gosto dos pãezinhos amaciando as horas. A vida, enfim.
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