Tenho feito, diariamente, o exercício de treinar meus olhos para a beleza do mundo. Não me tornei um alienado que se recusa a ver que o mal também grassa e que o pêndulo do humano continua a se inclinar onde o interesse pessoal encontra mais espaço. Vivemos em luta constante para domar o que há de sombrio e nefasto. Mas me recuso a aceitar o fato de que somos compostos apenas dessa matéria. Vejo, aqui e ali, atitudes de grandeza, gestos de generosidade, seres que se esquecem de si para acolher os que padecem. Nossa parte angelical pode ser pequena, mas quando fomentada encontra fértil terreno. De nada adianta destinar as melhores horas vociferando contra a revelação da violência e do egoísmo. Nossa substância não é tão diferente assim da do homem medieval ou longinquamente anterior a ele. Fomos feitos do mesmo barro.
Nosso cérebro é que evoluiu assombrosamente e hoje já sonhamos em domar a morte. Em breve, diz o historiador israelense Yuval Harari, ela será apenas uma questão técnica. Acredito. No entanto, palpita dentro de nós certo primitivismo que não deixa esquecer nossas origens. Somos predadores domesticados. Anjos e demônios que aprenderam a conviver sufocando o desejo quase “natural” do extermínio alheio. Mas querer salvar a própria pele não elimina a vontade de respirar poesia e imaginação, essas duas potentes ferramentas que nos fazem sonhar, criando o impossível.
Se você olha para um campo deserto, vê apenas o deserto? Não é acometido da doce tentação de habitá-lo com seres que nascem da sua quimera? Não? É uma pena, pois agindo assim está perdendo uma das mais significativas partes da vida. Ao deixar de lado esse recurso se alimentará apenas do que é real, segundo os critérios de objetividade. E nem sempre essa é a melhor matéria da qual podemos nos orgulhar. O que não está lá pode se tornar o mais belo cenário.
Esse que expande a emoção e torna suportáveis as agruras às quais somos submetidos. Procuro estar em ambos os lugares. Sou fiel às exigências ordinárias, essas que me fazem gastar preciosos minutos nas filas dos bancos, no trânsito, em lojas e supermercados – que se há de fazer. Mas geralmente é só o meu corpo que responde. Deixo a mente vagar por improváveis geografias. Ando de mãos dadas com criaturas que não se assemelham às gentes. E que me levam para passear por recintos inexistentes nos mapas. Então, por mais dura que seja a existência, eu a saúdo e, sem queixumes e revoltas, vou em busca de outras paragens. Isso deve causar horror a quem se gasta em meio a cifras e acúmulos.
Perdoem-me, ando desejoso de me ganhar, perdendo algumas posses. Quero a liberdade dos monges que precisam cuidar apenas das vestes, seu único pertencimento. Mas, ai de mim, ainda tateio entre o afã da leveza e o peso dos objetos. Continuo em guerra, no entanto, contra tudo que reduz meus movimentos.