Se todo vício é um redutor da liberdade, imagine-se o grau de frustração que advém da incapacidade de se manter longe da bebida, do jogo, das drogas. E de alguns outros coadjuvantes que não são classificados como tal, mas que deixam as pessoas num estado de torpor, olhando passivamente a própria destruição. Falo distanciado da experiência pessoal, mas pude observar a derrocada de seres próximos a mim e o sentimento de impotência é doloroso. Não há o que demova um dependente desses prazeres nocivos.
Desconfio que todos, absolutamente todos, sejam conscientes dos malefícios que vêm a galope, quando não conseguem frear estes ímpetos. O abismo está logo ali, mas continuam caminhando como se uma planície esperasse por eles. Nosso cérebro é ardiloso e o sistema de recompensas acaba por prevalecer. Pouco importa o alerta de que o processo é corrosivo e que acabará por arruinar a própria vida. É mais forte, e todo e qualquer argumento perde a sua força diante dos impulsos, das dificuldades em resistir ao desregramento. Onde isso inicia? Em que momento fomos incapazes de dizer não? Um descuido, um pequeno deslize e lá vamos nós. A velha afirmação de que "eu só vou experimentar, largo na hora que quiser" se defronta com evidências gritantes de que isso quase nunca é verdadeiro. Se você abre uma fresta (e isso é muito rápido), já não será mais capaz de fechá-la.
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Mas se há algo comovente, é acompanhar o processo de recuperação de quem se entregou a essa dissolução do corpo e da alma. O itinerário em que, em grupo ou individualmente, descobrem ser possível consertar os estragos. A perspectiva de dias mais límpidos, de ser devolvido ao trabalho e às relações afetivas, é uma espécie de lume que a muitos demove nestas circunstâncias que são longas temporadas no inferno. Isso deve gerar uma força como em raros outros momentos.
Sentir-se limpo, aberto para o mundo.
É quando reaprendemos a ver com a clareza de antes. Não há mais deformações e nem ilusões. Temos ao nosso dispor o rico e complexo material das emoções e o renovado desafio de não cair em tentação outra vez. O perigo pode estar próximo, mas dizemos a nós mesmos: Tudo certo, isso não me afeta mais. É quando o foco não está mais no caminho de descida, mas sim na grandeza de olhar para si e sentir-se digno. Penso nisso também com certa melancolia, ao lembrar dos que fraquejaram diante dos sacrifícios que fizeram para ter novamente o governo de si.
Somos frágeis, vulneráveis; recebemos influências constantes. Porém, a retomada da própria vontade nos torna grandes. Dá sempre para arrumar o que parece destinado ao fracasso. É a melhor maneira de continuar nascendo.