
Repercutiu muito mal entre os italianos no Exterior o Decreto-Lei 36, o Pacote Cidadania, apresentado nesta sexta-feira (28) pelo vice-primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores da Itália, Antonio Tajani. A medida altera totalmente as normas que regem o reconhecimento da cidadania jus sanguinis (direito de sangue) do país europeu, que agora passa a ser limitada a duas gerações (filhos e netos de italianos), além de eliminar o papel de análise de consulados e prefeituras, centralizando tudo em um órgão a ser criado em Roma.
Discussões sobre mudanças na lei pipocaram nos últimos meses na Itália, e um aumento das taxas cobradas dos interessados já havia sido aplicado no começo de 2025. O número de reconhecimentos no Exterior cresceu nos últimos anos, chamando a atenção das autoridades e causando transtorno em tribunais e pequenos municípios, devido ao aumento do número ações judiciais e pedidos de documentos. Um dos objetivos citados para a adoção dos novos critérios é valorizar o vínculo efetivo entre a Itália e os residentes no Exterior, estabelecendo limites precisos, que evitem abusos ou fenômenos de comercialização de passaportes italianos.
O Rio Grande do Sul, com 4 milhões de descendentes de italianos e 130 mil cidadãos reconhecidos, é bastante atingido pela medida. Atualmente há em torno de 23 mil inscrições aguardando chamamento pelo Consulado-Geral da Itália em Porto Alegre. Como cada uma dessas inscrições engloba, em média, de quatro a cinco pessoas, estima-se em cerca de 100 mil gaúchos aguardando na fila do reconhecimento. Nos últimos anos, especialmente a partir da posse do cônsul Valerio Caruso, em agosto de 2022, os trabalhos foram agilizados, tanto que em 2024 foram reconhecidas 6,4 mil cidadanias.
Choque e indignação foram os termos usados pela presidente do Comites RS (Comitato degli italiani all’Estero - Comitê dos italianos no Exterior), Cristina Mioranza, para descrever o sentimento sobre o que foi decretado na sexta. Ela ressalta que o órgão está debruçado sobre o tema e deve fazer uma manifestação institucional na segunda-feira (31). No entanto, pessoalmente ela se mostra bastante incomodada com as palavras do ministro Tajani na apresentação da nova lei. Entre outras acusações, ele afirmou que as pessoas buscavam a cidadania para fazer compras em Miami.
– Estou estarrecida, pois as palavras do ministro Tajani foram muito fortes. Era fato que ia acontecer algo com a lei, devido à bagunça que estava, mas não colocando todo mundo no mesmo barco, com os bons pagando pelos maus e tirando direitos adquiridos. Mais uma vez o governo italiano vira as costas para os imigrantes, assim como fizeram com os nossos antepassados em 1875 – critica Cristina.
A presidente do Comites lamenta também o fato de a medida vir justamente em um momento festivo para os ítalo-gaúchos, com a celebração dos 150 anos da imigração italiana no RS e a boa impressão criada pelo trabalho do cônsul Valerio Caruso. Além de analisar a validade jurídica do decreto, ela informa que o comitê também seguirá cobrando que o governo europeu valorize mais os descendentes e auxilie na divulgação da língua e cultura italianas, como fazem outros países com menor presença étnica no Estado.
Procurado pela reportagem, o cônsul-geral da Itália no RS, Valerio Caruso, preferiu não se manifestar, dizendo que aguarda orientações extras vindas de Roma. Na sexta-feira, pela internet, o consulado confirmou que, por força da nova lei, todos os procedimentos de entrega de documentação, agendamento para a entrega e inscrição na lista de espera estão suspensos por tempo indeterminado.
Lideranças projetam disputas jurídicas e políticas em torno do decreto
A ilegalidade da nova norma é o ponto central da argumentação do sociólogo e genealogista paulista Daniel Taddone, membro do CGIE (Consiglio Generale degli Italiani all’Estero - Conselho Geral dos Italianos no Exterior). Ele não economiza adjetivos negativos para se referir ao decreto, que ele chama de vergonhoso e absurdo, e aponta falhas jurídicas básicas, como o fato de impossibilitar que qualquer italiano registre regularmente um filho que nasça no Exterior. Por essa e outras inconsistências, ele entende como inevitável a contestação na Corte Constitucional da República Italiana.
Taddone defende que o documento é uma mancha absurda na lei de cidadania, já que tenta alterar por decreto leis consolidadas há décadas, e que só poderiam ser mudadas por meio de alteração constitucional, sem ferir direitos adquiridos:
– Totalmente inconstitucional. Não há possibilidade de não ser declarado inconstitucional, e se não for declarado, pode fechar as portas, e eu renuncio à minha cidadania, pois não é digno nem de uma república de bananas. Ele simplesmente diz que todos que nasceram no Exterior não são mais cidadãos italianos. Absurdo.
Já em vigor, o Decreto-Lei 36 deve ser analisado pelo parlamento italiano em até 60 dias. Apesar de o atual governo de extrema-direita ter maioria no parlamento, o tema deve gerar debates políticos intensos. Essa é a expectativa de Fabio Porta, sociólogo e deputado no parlamento italiano eleito pelo distrito da América do Sul.
Representante do PD (Partito Democratico), que faz oposição ao governo da primeira-ministra Giorgia Meloni, Porta criticou em suas redes sociais as palavras do ministro Tajani, classificando-as como uma verdadeira declaração de guerra aos italianos no Exterior. Além disso, considerou o anúncio um desrespeito ao parlamento e ao sistema de representação, pois as entidades não foram ouvidas.
– Um tema tão delicado não pode ser tratado de forma emergencial e precipitada. Analisarei o texto de forma completa e aguardarei os devidos trâmites parlamentares para intervir de forma séria e adequada, com o respeito que nos caracteriza e que evidentemente falta a este governo – afirma Porta.