
O conclave para escolha do sucessor de Francisco, que começa dentro de 15 a 20 dias, deve ser o mais tenso e diverso das últimas décadas. E, portanto, um dos mais incertos. A composição do chamado "colégio cardinalício" é considerada a menos europeia na história da Igreja Católica, e como há muitos novos integrantes, alguns vão se encontrar pela primeira vez para escolher o novo chefe desse grupo tão poderoso e, ao mesmo tempo, tão desafiado.
O que é certo, até agora, é o peso do legado e do exemplo de um papa que foi chamado de "irrepetível". Se até Francisco a bolha do Vaticano considerava normal usar ouro e arminho ao ler a passagem do Evangelho em que Cristo multiplica pães e peixes para aplacar a fome de necessitados, isso agora passará a ser, ao menos, um tanto desconfortável.
O cardeal Bergoglio foi pioneiro em muitos pontos: o primeiro jesuíta eleito ao papado, o primeiro sul-americano, o primeiro em mais de um século a ser enterrado fora da Igreja de São Pedro. Ao menos nas últimas décadas, foi o primeiro a dispensar os aposentos luxuosos do Palácio Apostólico para se acomodar em um quarto simples na Casa Santa Marta, onde morreu.
Por isso, o ritual que se segue à morte de um pontífice precisou de uma "inovação": foram selados o quarto no qual expirou e o que deveria ter ocupado no coração do Vaticano. Pode ser interpretado como uma preparação para que volte a ser ocupado. Ainda dispensou cruz e anel de ouro, além de outros ornamentos que refletem a riqueza da Igreja Católica.
Chamar Francisco de "irrepetível" embute reconhecimento e expectativa. Boa parte da cúpula católica deseja um papa menos controverso, para dizer o mínimo. O conclave será formado, em sua maioria, por cardeais nomeados por ele, o que não significa que esteja garantido o processo de adequação do Vaticano ao mundo contemporâneo. Ele indicou progressistas e conservadores, reformistas e tradicionalistas.
Na despedida, a maioria dos jornais italianos chamou Francisco de "Papa degli ultimi", por que ele repetia as escolhas de Cristo e dava atenção "aos últimos", ou aos excluídos dos pontos de vista econômicos, sociais, raciais e até nacionais – sua primeira saída do Vaticano, depois de se tornar papa, foi a Lampedusa, ilha no sul da Itália onde ainda hoje chegam sobreviventes de travessias.
Um barco foi o símbolo que escolheu para toda a humanidade que atravessava a tempestade da pandemia de covid-19 quando foi, sozinho, à Praça São Pedro. Foi uma das imagens mais emblemáticas de seu pontificado. Teria preferido ser chamado de papa da inclusão, porque sempre repetia que a Igreja Católica deveria ser de "tutti, tutti, tutti" (todos, todos, todos).
Toda a pompa já disfuncional pode até retornar – assim como a incômoda repetição das contradições da humanidade, que é mais rica e mais desigual do que nunca. Mas depois do papa com o nome do santo que questionou o contraste entre a riqueza da Igreja Católica e a miséria dos que eram, segundo o Evangelho, os preferidos de Jesus, o crucifixo de ouro e a indiferença vão pesar mais.