
O anúncio de que a Agrale havia fechado um acordo com a Foton para montagem de caminhões em Caxias do Sul, na última quarta-feira (9), foi a coroação de um processo de recuperação. Bastante afetada pela crise que atingiu o setor automotivo brasileiro na década passada, a empresa caxiense passou por amplo processo de reorganização, e a retomada da parceria com o gigante chinês, que já havia ocorrido em 2018 e 2019, é uma espécie de símbolo dessa volta por cima.
Com cinco plantas industriais (três em Caxias, uma no Espírito Santo e uma na Argentina) e 1,2 mil funcionários, a Agrale vai ser responsável pela montagem de cinco modelos de caminhões da Foton. Os componentes chegarão de navio no porto de Itajaí, em Santa Catarina, e serão trazidos para uma das unidades de Caxias, onde uma linha de 6 mil m² será dedicada à finalização dos produtos, com capacidade projetada para montar até 5 mil caminhões por ano, e com perspectiva futura de inserção de conteúdo nacional nos produtos.
Aos 86 anos de idade, o economista Hugo Zattera acompanhou praticamente toda a trajetória dos quase 63 anos da Agrale. Além de ter funções de comando na empresa desde 1996, primeiro como superintendente e atualmente como diretor-presidente, teve outros envolvimentos profissionais com o grupo, e possui também uma ligação familiar, já que é genro do fundador Francisco Stédile. Nesta entrevista, ele conta detalhes da parceria com os chineses, relembra o difícil processo de recuperação e se mostra otimista com o futuro da empresa, classificada por ele como “a única empresa automobilística brasileira”.
Pioneiro: Como surgiu essa negociação com a Foton?
Hugo Zattera: É uma longa história, pois em 2009 eu já estava negociando com eles. Tinha aquela ideia da fábrica deles aqui no Rio Grande do Sul, em Guaíba, e para antecipar a produção, nos pediram para começar a montar os produtos deles aqui, e nós fizemos isso durante um período. Depois veio o momento em que o mercado estava numa baixa muito significativa e eles começaram a ter dificuldades, e a partir desse relacionamento veio esse contato mais recente.
Já havendo esse relacionamento prévio, as tratativas foram rápidas?
As relações com o Oriente sempre exigem certa dose de paciência, mas trabalhamos e fizemos parceria. Eles conhecem bem a nossa expertise em produzir veículos, e assim fizemos um acordo de manufatura que prevê ainda a troca recíproca de componentes, porque nós fabricamos muitos componentes de veículos. Poderemos acessar alguns deles, mas o primeiro objetivo é iniciar a montagem, e já iniciamos.
Essa troca de componentes já começa agora, ou de momento haverá apenas a montagem do que material que virá da China?
Neste momento o demandante tem que entregar todos os componentes. A responsabilidade da Agrale é montar os produtos, fazer todos os procedimentos de garantia, de testes, e entregar um produto pronto e montado. A fábrica é da Agrale, e o que legalmente estamos fazendo é terceirizando a montagem. Mas, no andar da carruagem, além da montagem, podem vir a fabricação de componentes e a agregação de componentes locais.
Essa inclusão de material nacional tem prazo?
Isso vai levar um tempo, porque não é fácil você desenvolver cadeias de fornecedores. De um modo geral, até agora, a maioria das montadoras chinesas trabalhou só com importados e anunciou fábricas, mas estas ainda não estão muito ativas. O que eu vejo da Foton é o início de um processo de produção local, de integração de componentes locais, e isso para o país é bom, porque com a importação de um produto competitivo como o deles, na verdade a gente incentiva os empregos na China. Quando vem para cá, mesmo nesta fase inicial só de montagem, a gente já emprega e gera recursos aqui no Brasil. E depois é natural integrar componentes locais, até porque se você quiser acessar financiamento do BNDES para o adquirente tem que ter conteúdo local mínimo de 50%.
A parceria começa com caminhões pequenos, mas há perspectiva de outros produtos?
Começou com os veículos de 3,5 toneladas a 12 toneladas de peso bruto. Mas eles têm picape, van, superpesado, extrapesado. Não está descartado fabricar outros tipos que sejam adequados ao mercado do país. E outra coisa que eu acho importante e pode ajudar nisso é a ideia de que o Brasil seja um hub. Do México para baixo eles têm bons operadores, e a gente pode vender para toda a América Latina.
A Agrale teve uma experiência de fazer os caminhões da Navistar International, nos anos 90. Essa experiência ajudou no acerto com a Foton?
Nós temos uma subsidiária específica para esse tipo de atividade, a Agrale Montadora. Montamos durante quase duas décadas para a Navistar, e agora vamos fazer para a Foton porque temos a expertise, pois fazemos veículos há 40 anos. A Agrale fabrica caminhões e chassis de ônibus, que aliás é o principal produto nosso, além das viaturas para uso militar esportivo. Nós temos uma experiência muito grande, é essa a razão pela qual nos procuram.
Essa operação com a Foton vai gerar novos empregos na empresa já neste momento?
Nós estamos aumentando o nosso quadro, e temos mais de 80 vagas abertas só nessa operação que nós precisamos atender. E estamos com dificuldade de conseguir essas pessoas, pois em Caxias a mão de obra mais especializada não é muito abundante. E acreditamos que progressivamente vai aumentar a quantidade de funcionários.
A Agrale se destacou nos anos 1970 e 80 e depois enfrentou dificuldades na década de 90, quanto teve que se desfazer da Fras-le. Depois voltou a crescer e teve um grande momento por volta de 2010, mas sofreu bastante com a crise que veio a partir de 2014. Qual a lição desses ciclos anteriores, e como o senhor avalia o atual momento?
A Agrale teve ciclos que acompanharam o mercado. Em determinado momento ela basicamente dependia só de tratores, e houve uma queda muito grande neste setor. Metade das empresas foi embora do país, e as que sobraram, salvo duas, não trocaram de dono. Uma das que permaneceu foi a Agrale, mas à custa da venda da Fras-le, pois nós somos gente séria e pagamos nossas contas. Aí a empresa começou a avançar de novo e chegamos a crescer dois dígitos por ano, mas aí veio a crise do governo Dilma, que começou a eclodir em 2014.
Foi uma crise muito grande para o setor no país, e eu só vou te dar um número: nos caminhões, em 2013 foram vendidas 154 mil unidades no mercado interno. Quando chegou o final de 2016, o mercado tinha se reduzido a 50 mil, uma queda de 76%. Sobrou um terço da atividade, e isso afetou todas as empresas. As outras, porém, tem sua sede no exterior, enquanto nós somos daqui mesmo, não temos para onde ir, e tivemos que nos recuperar sozinhos.
Passamos por dificuldades muito fortes, e tivemos que baixar o número de funcionários, o que é um crime, porque treinamos o pessoal e depois tivemos que abrir mão dessa gente especializada para poder sobreviver. Mas trabalhamos, estamos recuperando e estamos crescendo. Para resumir, eu diria o seguinte: aproveitamos o período de crise para continuar desenvolvendo produtos, e hoje está frutificando.
A diversificação ajudou a manter a empresa? A ideia é nunca mais depender de um só produto, como foi o caso dos tratores?
Uma coisa importante a esclarecer é o seguinte: a Agrale, na prática, é a única empresa automobilística brasileira, e o Ministério do Desenvolvimento reconhece isso. As outras se chamam montadoras, pois têm projetos que vêm prontos do exterior e sofrem adequações. Já a Agrale tem que imaginar, projetar, fazer, testar, produzir e vender. E nós, em condições normais de mercado, não temos os recursos de marketing e os volumes que outras companhias têm. Então, nós somos uma empresa de nichos, e esta é a nossa forma de trabalhar.
Nós temos que trabalhar naqueles segmentos específicos que, para nós, são importantes e que, por uma vez, para o grande fabricante passa despercebido. E isso tem sido o êxito da Agrale. Nós somos líderes do mercado de chassi leve no Brasil, com média 40% a 50% do mercado há mais de 20 anos. Quando nós começamos no assunto, o mercado inteiro do Brasil variava de 600 a 800 por ano. Hoje vai a 7 mil, 8 mil por ano, e nós somos líderes desde aquela época porque tomamos a dianteira.
Outro caso é o Marruá, que foi desenvolvido com duas finalidades. Nós privilegiamos a aplicação militar, e temos milhares de unidades de diversos países operando, mas na área civil transformamos a viatura militar num ônibus para o programa Caminho da Escola, para uso em locais onde não existe estrada. Conseguimos transformar ele em um elemento de paz e apoio a crianças. É uma coisa da qual eu me orgulho muito.