Somos um pedaço de corpo que, inundado, chora. Nossos sonhos foram encharcados. Onde antes havia casas, pontes, cidades, um vazio foi aberto. As águas criaram um sulco sobre o solo e a paisagem. Também não somos mais os mesmos. A revolução aquática a qual fomos submetidos lavou de nossas faces nossas máscaras. De repente e de modo muito acelerado revelamos nosso caráter maciçamente. As redes sociais se transformaram, mais do que antes, em espelhos da alma. Fernando Pessoa ficaria horrorizado com tal constatação. Ainda não há espaço para a poesia. A vida ganhou um sentido de urgência. E corremos contra o tempo, literalmente, para conseguir desafogar o medo que sentimos. Muitos perderam tudo e para quem não perdeu nada fica difícil dimensionar a palavra. Os que sobreviveram terão de reiniciar uma vida a partir de um não-lugar. É pouca geografia para muita história que fora perdida, pois não é possível pensar na condição humana separada do ambiente, ou melhor, do meio ambiente. Entre a movimentação e o deslocamento dos territórios, a natureza, mas principalmente os políticos e suas políticas ideológicas de ganho selvagem acima de tudo e de todos, promove processos de desterritorialização em massa. Um nome mais conhecido para isso: refugiados climáticos. É impossível negar o estrago que fizemos. Mas há, como sempre houve, os arautos da ignorância que acham que a natureza é a culpada, sendo melhor extirpá-la. O pior é descobrir que as relações são muito rasas. Não há diálogo, não há disposição para pensar fora do próprio umbigo, não há desejo de reelaboração e ressignificação do que nos ocorreu. As ideias, as vontades, as maldades tudo se mistura como as águas das enchentes que juntaram tudo que encontravam pela frente.
Depois da chuva
Opinião
As águas de fora e as de dentro
É pouca geografia para muita história que fora perdida, pois não é possível pensar na condição humana separada do ambiente, ou melhor, do meio ambiente
Adriana Antunes
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