Atrás da minha casa passava um córrego. Isso quando nasci. Quando o bairro ainda não era e nem imaginava ser o que hoje é. Era um filete de água pura de pouco mais de um metro de largura. Passavam por ali gamberi, girinos e minha imaginação. Sempre fui encantada pela história do menino que morava dentro da barriga de uma baleia. Uma casa-peixe. Imaginem ter por destino ir morar dentro do estômago de outro ser. Deve ser daí a minha predileção por assuntos de gastronomia. Para além do estranhamento da lembrança, sempre achei que o maior carinho que alguém pode expressar é alimentar o outro. Talvez sejam resquícios de uma nona italiana e outra alemã que não sossegavam enquanto eu não estivesse mastigando algo o tempo todo. E hoje vivemos um tempo em que comemos tudo muito rápido, sem apreciar o gosto, o aroma, a procedência. Comemos sem saber.
Gosto de dizer que sou da família dos gastrópodes, afinal, o ventre é uma cavidade acolhedora. Nossas barrigas são nossas casas. Saímos de uma. Já tivemos a experiência de viver dentro da barriga de outra antes de estar aqui. E algumas de nós teremos a chance de ser a casa de alguém. Metaforicamente falando, sempre somos a casa de alguém. Homens e mulheres guardam o mundo em suas barrigas.
A barriga é o resultado do que comemos e do que não fazemos, para o bem e para o mal. As fábulas e os mitos são cheios de histórias de pessoas que engoliam o mundo ao redor, Gargântua, Chronos, lobo mau, Moby Dick. Nós também engolimos de um tudo, volta e meia. Engolimos nossas angústias, medos, os relacionamentos que não dão certo, o emprego chato, a falta de perspectiva, a sensação de desamparo. Às vezes regurgitamos, colocamos para fora, noutras temos cólicas, mas não conseguimos nos livrar dos sapos, rãs e toda espécie estranha que passa pela nossa garganta.
Precisamos (re)aprender a nos alimentar de alegrias, de poesias, de confiança, de coragem. É verdade que nem sempre conseguiremos nos livrar dos cardápios-surpresa muitas vezes desagradáveis que a vida nos apresenta. Bom, façamos como Jonas, o menino que morava na barriga da baleia, que nosso recipiente alquímico, chamado estômago, pleno de suas águas e ácidos primitivos nos ensine o princípio da assimilação e que a partir disso possamos descobrir o que podemos ou não comer. Nietzsche dizia que o órgão mais inteligente em nosso corpo é o estômago, pois ele logo coloca para fora tudo o que nos faz mal. Talvez esteja na hora de prestarmos mais atenção e ouvir o que ele anda querendo nos dizer.