Ele acordou às seis da manhã, beijou a esposa e a filha, bebeu um café preto e comeu um pedaço de pão dormido com margarina. Caminhou algumas quadras para tomar o primeiro ônibus, que atrasou vinte minutos e chegou lotado. Não conseguiu alcançar o segundo ônibus em tempo e teve que esperar um próximo. Bateu o ponto na obra com uma hora de atraso, às nove horas. Ele não pode arriscar, afinal tem uma fila ali fora para ocupar seu lugar ao menor sinal de vacilo.
Ao meio-dia tirou os trinta minutos para almoçar e se recostar em qualquer canto com uma resma de sombra. Foi difícil comer a marmita morna, pois tem uma dor no peito ao engolir que não o deixa em paz. Mas, o posto de saúde já marcou consulta com o especialista: em cinco meses saberá do que se trata. Até lá, é melhor comer do que definhar. "A dor ensina a gemer", dizia ele a si mesmo.
De volta ao trabalho, recebeu uma ligação no celular. Era a monitora da creche municipal onde fica sua filha de quatro anos. Ela estava com febre, e a creche não tem enfermaria e nem medicamentos. Ele pede que aguardem até o final da tarde para que ele pegue a criança. A esposa não pode, pois sai do emprego apenas à noite. Além disso, raramente ouve o celular, pois trabalha em um ambiente muito barulhento de uma fábrica. Também não adiantaria, pois como está grávida de oito meses, não consegue carregar a filha no colo.
O resto da tarde se arrastou entre a moleza nas pernas e a imagem da filha pedindo por ele. Mas, graças ao almoço de meia hora, ele conseguiu sair um pouco mais cedo. Pegou a filha na creche e estava em casa ao cair do sol. A menina dava sinais de um resfriado, e foi medicada com um antigripal infantil. Se ela não melhorar, terá de faltar ao trabalho no dia seguinte e levá-la ao posto de saúde, considerou. Ainda que falte o dinheiro da labuta desse dia, é a saúde da sua filhinha que está em questão.
Enquanto a menina dormia, preparou um arroz com carne moída para aguardar a esposa e também para a marmita do dia seguinte. No caminho para casa, ela foi assaltada. Roubaram o celular e alguns trocados. "Mas, você está bem!", disse ele, comemorando. Jantaram e adormeceram assistindo ao noticiário, onde alguém dizia que o maior problema do Brasil, hoje, é o rombo da Previdência, causado por aposentadorias precoces.