Antes, tínhamos a figura do menor abandonado. Hoje, temos a do maior abandonado. Não necessariamente aquele dos versos de Cazuza, em busca de "migalhas dormidas do teu pão". Não apenas esse, mas também o homem e a mulher de rua percebidos menos pelo olhar, que desviamos porque incomoda, e mais pelo cheiro de corpo que geralmente clama por banho, pelo ruído do carrinho de supermercado transbordando tralhas, não compras, pela insistência na abordagem, pela voz típica de quem bebe ou se droga, pelos latidos de cães sem comida e sem vacina, mas que pelo menos os encaram como seres humanos, não como zumbis.
Se constituíssem uma população à parte, os seres de rua de Porto Alegre teriam o mesmo peso de muitos desses municípios interioranos que elegem vereador e prefeito, têm uma praça central, uma igreja, um fórum. Mas estão espalhados, impondo uma nova estética às calçadas, marquises, viadutos, parques, à cidade inteira. Haverá um dia em que serão numericamente majoritários. Vamos esperar a situação chegar a esse ponto para só então nos darmos conta, como aconteceu em relação às crianças pedintes, e indagarmos o que querem, fazendo o que deve ser feito para torná-los cidadãos?
Vamos nos limitar por quanto tempo a olhar o desalento nas ruas, sem ver e sem agir?
Tem muitas pessoas que se culpam por comer demais e dormem até tarde em cama seca, mas têm consciência do que é estar na rua – o frio, a chuva, a fome, a sujeira por todo lado, a violência à espreita, o preconceito, a rejeição. Então, saem por aí promovendo brechós que permitem aos sem-teto escolher a roupa de sua numeração e gosto pessoal, servem sopa, providenciam documentação, oferecem até banho quente, com sabonete. É uma resposta comovente a quem, nas redes sociais, sugere que se leve para casa quem precisa de auxílio, e defende até mesmo seu extermínio. Mas compaixão, normalmente, ajuda mais a quem a pratica, não ao outro.
Entre quem está ao relento, tem desempregado que sonha com uma oportunidade de trabalho, tem alcoolista e dependente químico sem acesso a um programa de redução de danos, tem gente que deveria se encontrar numa clínica especializada em problemas mentais, tem grávida precisando de pré-natal, tem idoso com doenças crônicas não tratadas, tem quem queira apenas um teto sem horário fixo para entrar e sair, tem até os que devem prestar contas com a Justiça. Antes de decidir por essas pessoas, é preciso ouvi-las para saber com o que sonham.
Nós, que temos um lar, não deveríamos nos resignar, aceitando as imposições desse poder que de público tem tão pouco, quase nada, pois se limita a cobrar impostos e multas, sem fazer o que deveria, como cuidar de quem está na rua. Os sem-teto não são uma fatalidade.
Hoje, não temos mais o menor abandonado.
A expressão tornou-se até politicamente incorreta. Temos agora o maior abandonado, multiplicando-se como as explicações oficiais para o fato de não serem atendidos como deveriam.
Até quando? Vamos nos limitar por quanto tempo a olhar o desalento nas ruas, sem ver e sem agir?