*Economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS
Considere que você acordou atrasado e tomou apenas uma xícara de café. Trabalhou a manhã toda e não teve tempo de almoçar, comendo apenas um pastel. Trabalhou até a noite e voltou para casa, na esperança de devorar aquela lasanha que havia sobrado do final de semana. Ao entrar na cozinha, afoito, descobre que a lasanha estragou, pois faltou luz e a geladeira ficou o dia todo desligada. Você, depois de esbravejar um pouco, senta e pensa como vai fazer para comer algo. É aqui que a história de quem passa fome se diferencia da sua: você acha uma solução; ela, vira para o lado e tenta dormir para esquecer da fome – às vezes, ainda precisa nanar uma criança, para que ela também esqueça da fome.
A esta altura, você possivelmente está torcendo o nariz, dizendo que é sensacionalista fazer esse tipo de abordagem. Você está correto. Só que a fome é uma situação naturalmente sensacionalista. Na minha opinião, o reprovável deveria ser o contrário, ou seja, tentar amenizar e contemporizar a privação daquele elemento mais fundamental para dignidade humana: o alimento.
Este mês, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) divulgou seu relatório anual, apontando dados recentes e algumas projeções. A má notícia é que, depois de quase 15 anos de retração, a fome voltou a crescer no mundo. Alguns analistas e agências de notícias abordaram o fato relativizando o número, ressaltando que esse resultado é puxado por regiões delimitadas, assoladas pela guerra. Eu prefiro esquecer o relativismo e olhar para o número absoluto: são 815 milhões de pessoas subalimentadas. Em 2015, eram 777 milhões de pessoas subalimentadas; em 2016, foram acrescentadas mais 38 milhões nesta conta.
A situação se torna ainda mais surreal, em pleno século 21, se considerarmos que hoje produzimos aproximadamente 54% mais alimento do que em 1960, em termos per capita. A literatura sobre pobreza e fome já indica, há muitos anos, que o problema não é a produção por si só, mas sua distribuição através do sistema de preço.
Se pessoas passam fome, a culpa é nossa, como sociedade global, por não sermos capazes de ter um sistema suficientemente organizado para que isso não aconteça. Aos que insistem no argumento da guerra, eu tenho pouco a dizer, mas muito a lamentar.