Rai Duarte espera há dois anos por uma resolução para o caso que ganhou seu nome. Em 1º de maio de 2022, conforme denúncia apresentada pelo Ministério Público do RS, ele e outros 11 torcedores do Brasil de Pelotas foram torturados por 17 policiais militares após uma partida do Xavante contra o São José, no Estádio Passo D’Areia, em Porto Alegre.
A esperança do servidor público de 35 anos é frase clichê de que a “justiça tarda, mas não falha”. Com lesões no abdômen, Rai Duarte ficou 116 dias internado no Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, e foi submetido a 14 cirurgias. E o pior: não faz ideia do motivo.
— Estou aqui por um milagre. Bateram minha cabeça na parede e estouraram meu abdômen. Tive traumatismo craniano e hemorragia interna. Quatro meses de hospital, sendo 47 na UTI. Com minha mulher grávida, quase deixaram um filho sem pai — disse Rai à Zero Hora antes de entrar no Tribunal para o depoimento.
— Tenho localizador no meu celular, minha mãe sabe sempre onde estou. Agora vivo com remédio para dormir, acordo no meio da noite assustado. Sem falar nas sequelas físicas. Não posso jogar futebol, correr, nem nadar. Os órgãos da minha barriga balançam — complementou.
O depoimento
Nesta segunda-feira (24), Duarte prestou depoimento ao Tribunal da Justiça Militar. O órgão é quem apura a conduta dos PM’s no episódio e irá definir seus destinos na Brigada Militar. Na oitiva, ele respondeu aos questionamentos da juíza Karina do Nascimento, da promotora do Ministério Público Janine Soares e dos advogados de acusação e defesa. E deu detalhes do que se recorda do episódio.
— Faz dois anos e ainda não conseguimos entender o que aconteceu comigo — disse Duarte ao responder a primeira questão da juíza.
Vestindo um abrigo Brasil de Pelotas, clube do coração e que acompanhava desde a infância, seja em Pelotas ou em viagens, o servidor municipal fez questão de tirar a jaqueta e mostrar para a bancada as enormes cicatrizes na barriga. Consequências das agressões sofridas há dois anos e das 14 cirurgias realizadas.
No depoimento, Rai contou que foi retirado de um ônibus de excursão após o jogo entre São José e Brasil por três policiais sem justificativa. Desde então, passou a ser agredido com tapas e chutes. Em seguida, foi levado para uma sala onde estavam outros 11 torcedores do Xavante. Esses estavam detidos por participarem de um conflito com a torcida do time da Capital, no qual Duarte não estava.
Ao chegar nesta sala e se deparar com os outros homens, algemados, sendo agredidos, passou a questionar a abordagem. Policial voluntário por três anos, ele afirmara conhecer os procedimentos corretos.
— Questionei o procedimento, pedi para pararem e responderam com palavrões. Falei que eu era ex-policial, que tinha conhecimento de como se fazia uma abordagem. Mas só me batiam, chamavam de lixo e outras coisas que prefiro não dizer aqui — relatou.
Duarte explicou que, depois, foi levado para uma outra sala — que seria um banheiro desativado e sem luz. Por ser ex-colega, teria um tratamento "especial". Lá, teve a cabeça batida contra a parede uma série de vezes e agredido com bastões (cassetetes).
— Me bateram dentro do banheiro desativado, que chamavam de salinha. Desmaiei várias vezes. Voltaram a me bater. Acordava e apagava — destacou.
Ida ao hospital
Os 12 torcedores detidos deixaram o Passo D'Areia em duas viaturas da Brigada Militar, onde afirmam terem sofrido ameaças. Segundo Rai, a partir daí sua memória começou a falhar em razão dos desmaios. Ele recorda terem ido ao Hospital de Pronto Socorro, onde novamente foi agredido. Lá, ele desmaiou na sala de espera e teve de ser levado imediatamente para a emergência.
— Fui arrastado que nem um bicho para o carro e fui jogado sobre os outros. No hospital eu desmaiei e, partir daí, não lembro de mais nada — explicou.
Com lesões no abdômen, Rai Duarte ficou 116 dias internado no Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, e foi submetido a 14 cirurgias. Ele recebeu alta no final de agosto do mesmo ano, porém ainda está em recuperação e afastado do trabalho, no mínimo, até outubro de 2025.
— O perito do INSS queria me aposentar. Como vou me aposentar com 35 anos e receber um terço do que eu ganhava? Não tem como — explicou à ZH.
Afastado do trabalho, a rotina de Rai é cuidar dos filhos Hyantony, de 1 ano e sete meses, e da pequena Valentina, que nasceu na última quinta-feira (20). Na próxima semana, ele irá a Porto Alegre para uma nova consulta médica. Desta consulta, espera sair com uma nova (e última) cirurgia marcada para tentar retomar a vida normal. Menos ir ao estádio.
— Eu acredito na justiça e sempre acreditei na instituição Brigada Militar. Mas o futebol acabou para mim. Futebol me traz lembranças que eu não gostaria de ter — explicou.
Nesta segunda-feira (24), outras três vítimas também foram ouvidas pelo Tribunal da Justiça Militar do RS. No total, 14 já passaram pelas oitivas, que se iniciaram em abril. Ainda não há previsão de conclusão do inquérito.