Há clima para um jogo prosseguir após algum jogador sofrer injúrias raciais? Para quem é vítima do preconceito, a resposta é não. Porém, para quem organiza campeonatos e para quem julga equipes que decidem abandonar uma partida, ainda não está tão evidente o abalo individual e coletivo após ofensas em razão da cor da pele ou de outros fatores.
Por três vezes o futsal gaúcho foi confrontado com essa situação em 2024. Primeiro, o Guarani, de Frederico Westphalen, deixou um duelo da fase de grupos do Gauchão após denúncia de injúrias raciais partindo das arquibancadas da torcida da Afucs, de Seberi, onde o jogo, válido pela fase classificatória, ocorria.
Na Série Prata, o Vamo Dale, de Porto Alegre, abandonou a quadra após um de seu jogadores denunciar um colega de quadra, da AVF, de Manoel Viana. A partida era válida pela volta das quartas de final.
Em ambas as situações, os times das vítimas foram punidos pelo Tribunal de Justiça Desportiva (TDJ) com perda de pontos por abandono de partida, com base no artigo 203 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que diz: "deixar de disputar, sem justa causa, partida, prova ou o equivalente na respectiva modalidade, ou dar causa à sua não realização ou à sua suspensão".
No jogo da Série Prata, o acusado de cometer a injúria racial foi o atleta Vitor Otávio de Oliveira Irizaga, da AVF. O fixo Jhonatan Silva, do Vamo Dale, disse ter sido chamado de "macaco". Vitor Otávio nega a acusação. Contudo, ele foi punido com dois jogos de suspensão pelo artigo 243-G do CBJD, que trata de "ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência". A AVF seguiu na Série Prata, e as duas partidas de suspensão do jogador foram cumpridos na semifinal.
A situação mais recente é a que teve desdobramentos judiciais: o Atlântico, após o primeiro julgamento no Tribunal de Justiça Desportiva do rio Grande do Sul (TJD-RS), foi eliminado do Gauchão por abandonar a quadra durante o jogo de volta da semifinal contra o Guarany, em Espumoso. O time de Erechim deixou o ginásio depois do acusado de injuriar racialmente o goleiro João Paulo não ser detido. Os donos da casa levaram uma multa de R$ 10 mil — posteriormente elevada para R$ 20 mil — e deveriam jogar duas vezes com os portões fechados.
O Galo recorreu e conseguiu que a sentença fosse revisada no Pleno do TJD, que reverteu a eliminação e decidiu que a partida deverá ser retomada (faltavam 5 minutos e 10 segundos da prorrogação). O empate em 1 a 1 estava levando a decisão aos pênaltis. O clube erechinense voltou a recorrer por não querer jogar em Espumoso. A decisão ficará por conta do Superior Tribunal da Justiça Desportiva (STJD), já em recesso de final de ano. O desfecho do caso e do campeonato, assim, ficarão para 2025.
Dos três casos de 2024, por enquanto, houve dois indiciamentos. O do torcedor que xingou João Paulo, do Atlântico, que não teve identidade revelada, e o do jogador Vitor Otávio, da AVF.
Também há um inquérito sem desfecho, no caso do jogo de Seberi. Goleiro e técnico da equipe visitante, o Guarani, reclamaram de xingamentos racistas vindos das arquibancadas. A investigação estava em fase final de coleta dos depoimentos, segundo informou o delegado Eduardo Nardi na última quarta-feira (18).
Atualmente, as penalizações são aplicadas pelo TJD, e não pelas entidades organizadoras dos campeonatos. A regras constam CBJD, utilizado como base dos julgamentos do Tribunal.
Além do 203, o artigo que trata da perda de pontos — e, no caso do mata-mata, a possível eliminação — é o 205, que descreve: "impedir o prosseguimento de partida, prova ou equivalente que estiver disputando, por insuficiência numérica intencional de seus atletas ou por qualquer outra forma".
Entre a educação e a punição
Diante deste cenário, o que pode ser feito pelo futsal gaúcho para acabar de vez com o racismo nas quadras? Ou, ao menos, evitar que as vítimas sejam punidas?
O professor Lucas Rosito, especialista em Psicologia do Esporte, analisa o porquê de arenas esportivas serem palco para atos de racistas. Ele explica que a provocação para desequilibrar o aspecto emocional do adversário faz parte da cultura do esporte. E é nesse contexto que aparecem as injúrias raciais.
Rosito acrescenta que esse tipo de violência ganha mais vazão quando o indivíduo está em grupo, no "anonimato" das multidões. O psicólogo ressalta a importância da punição legal, bem como de campanhas educacionais para que o racismo seja combatido.
— Inevitavelmente, a gente tem que continuar fazendo campanhas, continuar tornando esses assuntos notórios e, nesse sentido, direcionar, educar e reforçar atitudes contrárias à violência, nesse caso, a injúria racial. Ao mesmo tempo, quem pratica a injúria precisa sofrer uma punição condizente a isso. E quanto mais rápida e mais pessoal a punição, mais chance ela teria de ter efeito sobre aquele sujeito — opina o professor.
Alvo de injúria racial, João Paulo contou a GZH Passo Fundo sobre como o caso no jogo contra o Guarany o marcou profundamente:
— Eu ficava me perguntando: "Mas por quê, o que eu fiz para merecer isso? O que a gente fez?". A gente não fez nada, cara. A gente não merece isso, é difícil de dizer, mas eu fiquei com um sentimento de tristeza e angústia.
Para o goleiro, as punições para atitudes racistas são brandas.
— Eu acredito que deveria ter uma punição mais severa, porque isso vai continuar acontecendo, né? — afirmou.
Não é de hoje
Ex-pivô da seleção brasileira, Carlos Roberto Castro da Silva, o Choco, relembra que conviveu com o racismo durante toda a sua carreira, que teve seu auge nos anos 1990. Hoje, aposentado aos 53 anos, espera que um dia esses atos desumanos cheguem ao fim.
— Em quase todas as cidades eu sofria racismo. Algumas torcidas colocavam um boneco de macaco pendurado numa forca, com o meu nome. Eu acabava não ligando muito porque meu objetivo era vencer na carreira, ajudar a minha mãe, mas já era chato. E hoje está demais — destaca.
O ex-atleta porto-alegrense também defendeu que as punições aos atos racistas sejam mais duras:
— Temos que acabar de uma vez com isso. Precisamos que as leis sejam mais rígidas e que as pessoas paguem pelos seus atos racistas.
O que pode ser feito
Rosito sugere, entre outras ações, que os regulamentos das competições prevejam que, quando uma equipe se sentir prejudicada por injúria racial, ela tenha o direito de não dar continuidade ao jogo. Isso poderia evitar que os clubes que saiam de quadra sejam, no fim, as que recebam a punição desportiva mais severa, como perda de pontos ou até eliminação.
— A injúria racial certamente pode ser um marcador emocional mais complexo, mais pesado e pode certamente influenciar o desempenho e a performance de alguns desses atletas — complementa o professor.
Palavras do treinador Paulinho Sananduva após o Atlântico deixar a quadra atestam o impacto desse tipo de atitude no grupo de atletas.
— Eu tinha dois atletas chorando dentro do vestiário. Não tinha a menor condição do jogo continuar — contou.
Tanto a Federação Gaúcha de Futebol de Salão (FGFS), organizadora da Série Prata, quanto a Liga Gaúcha, responsável pelo Gauchão, afirmam que estão movimentando-se para criar mecanismos que auxiliem na luta antirracista.
A FGFS estuda montar uma comissão para agilizar decisões sobre esses casos, que continuariam passando pelo TJD, órgão independente. O grupo, que seria criado pela presidente da FGFS, Ivan Rodrigues dos Santos, reuniria-se todas as segundas-feiras, depois da rodada do fim de semana, para analisar eventuais episódios de racismo.
A Liga Gaúcha anunciou, em 13 de dezembro, que aderiu à campanha antirracista do Ministério Público do Trabalho. A entidade esportiva informou que vai imprimir e enviar os quadrinhos intitulados Antirracismo F.C. para clubes das três divisões do futsal adulto masculino. A ação começa no próxima temporada e tem o apoio do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. O material deverá ser distribuído nos ginásios.
O presidente da Liga Gaúcha, Nelson Bavier, não descarta que punições passem a ser previstas nos regulamentos das competições. Essa novidade precisa passar por aprovações dos clubes e deve ser discutida no próximo congresso técnico, no início de 2025.