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— O medo sempre foi menor que a minha enorme curiosidade pela vida — afirma Isabel Fillardis ao comentar a diversidade de áreas que perpassam as suas mais de três décadas de carreira.
Aos 51 anos, ela ostenta com orgulho a alcunha de "artista completa". Começou a trabalhar como modelo ainda adolescente e, com apenas 18 anos, fez sua estreia na TV aberta como a personagem Ritinha, da primeira versão de Renascer.
Na música, integrou o grupo musical As Sublimes, do hit Boneca de Fogo, sucesso da black music brasileira nos anos 1990. Ainda se aventurou como produtora audiovisual, chegou a apresentar o Fantástico e estrelou dezenas de novelas, filmes e espetáculos teatrais, marcando seu nome na dramaturgia brasileira.
Os bastidores de cada etapa da longeva e bem-sucedida trajetória de Isabel Fillardis estão esmiuçados na autobiografia lançada em novembro do ano passado. Contudo, em Muito Prazer, Isabel: Cristina & Fillardis, a artista ultrapassa o escopo profissional. A criança, a menina, a filha, a mãe, a ativista, a mulher e todas as suas demais facetas estão presentes no livro, que também conta com uma versão em áudio narrada por ela própria.
Isabel Fillardis não economiza ao contar a própria história. Sem nenhuma pressa, ao longo de 279 páginas, ela remonta o passado, escancara o presente e sonha com o futuro. Também celebra cada uma de suas vitórias, mas não deixa de lado as derrotas, narradas com a maturidade de quem consegue dar sentido às pedras encontradas pelo caminho.
Todas as minhas experiências contribuíram para que me tornasse a pessoa que sou hoje
ISABEL FILLARDIS
Atriz, cantora e modelo
A obra foi a concretização de uma ambição antiga de Isabel, registrada por ela em seu caderno de desejos. A artista almejava lançar um livro, não necessariamente uma autobiografia, mas a resposta do Universo não poderia ter sido mais certeira.
— Quando surgiu o convite para contar a minha história, percebi quanta coisa já tinha vivido em 50 anos e como as minhas experiências poderiam servir de algo para as outras pessoas — lembra Isabel. — Tenho mais uma longa caminhada pela frente, então, talvez tenha que lançar a parte dois daqui alguns anos — diverte-se.
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A artista repassa no livro temas como a descoberta do racismo, a construção da própria autoestima e os desafios de ser artista, mulher e negra no Brasil ao longo das décadas.
Lembra, ainda, a luta contra o câncer de língua enfrentado em meados dos anos 2000 e elenca com profunda sinceridade as dores e delícias da maternidade atípica, vivenciada por ela em dose tripla — Analuz, Jamal e Kalel, os três filhos da artista, são neurodivergentes.
Em entrevista a Donna, Isabel Fillardis reflete sobre a própria trajetória, além de outros temas presentes na autobiografia.
Confira a entrevista com Isabel Fillardis
Com o lançamento da autobiografia, a sua vida se tornou um livro aberto. A ideia de compartilhar detalhes íntimos te assustou?
Em momento nenhum, porque esse sempre foi o meu desejo. Sou uma pessoa que passou por experiências muito ruins e conseguiu transformar cada uma delas em uma lição positiva, por isso sentia o desejo de compartilhar o que aprendi.
Me encanta a ideia de pegar algo que você viveu e que te ensinou algo, passar adiante, e aquilo transformar a vida de outra pessoa, sabe? Tem muita gente vivendo situações difíceis, passando por problemas, e as minhas experiências talvez possam ajudá-las a lidar com isso.
Minha mãe me educou para entrar de cabeça erguida em qualquer lugar, me ensinou que todos os lugares são o meu lugar, e isso me fez entender muito cedo quem eu sou e qual é o meu valor.
ISABEL FILLARDIS
Atriz, cantora e modelo
Você passa por vários temas ao longo do livro. Quero começar falando sobre um dos primeiros que você aborda: o racismo. Como você viveu o processo de descobrir a existência do preconceito racial?
O racismo é uma doença terrível. Fui apresentada a isso na infância com comentários que ouvia na escola, mas não havia um debate estabelecido como se tem hoje, aquilo era tido como bullying. Não tinha o entendimento do que estava sofrendo, só adulta é que fui descobrir realmente o racismo.
Tudo o que o preconceito causa na vida das pessoas negras, o modo como está impregnado na estrutura da nossa sociedade, só fui entender bem depois. Se tornou a luta de uma vida inteira para mim. É uma luta longa, difícil e sobre a qual ainda não vejo tantos resultados satisfatórios, mas espero estar contribuindo para que os meus filhos consigam viver em um mundo mais igualitário.
Dentro desse contexto, como foi a construção da sua autoestima enquanto uma menina e, depois, uma mulher preta?
A minha família foi essencial nesse processo. Comecei a trabalhar como modelo muito jovem em uma época de pouquíssimas referências de mulheres negras na moda. Minha mãe me educou para entrar de cabeça erguida em qualquer lugar, me ensinou que todos os lugares são o meu lugar, e isso me fez entender muito cedo quem eu sou e qual é o meu valor. Essa educação me blindou de sentir e sofrer várias coisas.
Você também descobriu cedo o poder da representatividade. Afinal, bastante jovem, foi escalada para viver a Ritinha, de Renascer, uma personagem de destaque no horário nobre da televisão. Tinha noção do significado disso?
Nenhuma. Até mesmo porque, a princípio, Ritinha teria pouca participação na novela, mas acabou crescendo. Quer dizer, o meu talento genuíno ajudou a personagem a crescer. Eu ainda nem tinha formação na área, mas a personagem começou a fazer sucesso, conquistou o público, e não conseguia nem andar na rua.
Também havia a minha carreira como cantora. Era uma menina preta com um papel de destaque na novela das oito e que integrava uma girlband de sucesso, formada por mais duas meninas pretas. Olha a importância que isso tinha, quantas barreiras estavam sendo rompidas. Essa noção só fui ter anos mais tarde.
Você de fato se tornou uma referência. Consegue se enxergar nesse lugar?
Hoje, sim. Demorei para entender isso. Só consegui ter um entendimento claro sobre a minha representatividade após a chegada das redes sociais, porque elas possibilitaram uma troca maior com o público. E isso vem acompanhado de uma responsabilidade. Sem peso, sem culpa ou qualquer tipo de amarra, mas há, sim, uma responsabilidade.
Me vejo na posição de quem precisa usar as armas que têm para ajudar a transformar o que não está bacana no mundo. Não fazer nada é contribuir para o não-progresso, e sinto muito prazer em fazer a minha parte.
Neste ano, nós temos, pela primeira vez na história da televisão, três atrizes negras como protagonistas das três principais novelas do país. O que você sente diante disso?
Sinto muita alegria por estarmos avançando, mas também sinto que não podemos esmorecer, porque o nosso avanço não pode parar. Precisamos de cada vez mais personagens diversificados, complexos e que representem todo tipo de ser humano, sendo oferecidos a artistas negros. É uma conquista, mas é só o começo.
Você espera também viver uma protagonista na TV?
Eu espero. Nunca fiz uma protagonista e, sinceramente, está mais do que na hora disso acontecer.
Na autobiografia, você narra a sua experiência com o câncer. Consegue ver algum propósito no que enfrentou?
Consigo. Quando você enfrenta uma doença maligna como o câncer, você revisita a sua trajetória e modifica a sua forma de enxergar as coisas. Sempre fui uma pessoa apaixonada pela vida, mas me tornei ainda mais depois do câncer. A conheci de verdade e entendi o quanto gosto de viver, de estar aqui e de cada pedaço da minha vida.
Me vejo na posição de quem precisa usar as armas que têm para ajudar a transformar o que não está bacana no mundo. Não fazer nada é contribuir para o não-progresso.
ISABEL FILLARDIS
Atriz, cantora e modelo
É interessante que, no livro, você fala de forma positiva de todas as situações difíceis pelas quais passou, como alguém que procura o melhor de tudo.
Realmente sou assim. Todas as minhas dores se tornaram aprendizados. A gente tem uma visão restrita do que são os problemas, e procuro olhar para os meus sempre como desafios que têm algo a me ensinar. Isso não quer dizer que não sofra, não xingue, nem fique triste. A diferença está no modo como uso eles para me tornar mais forte.
Você descreve seus filhos como as maiores conquistas da sua vida. O que a chegada deles transformou em você?
Transformou tudo. O divisor de águas da minha vida foi quando me tornei mãe, porque você começa a querer promover mudanças, a fazer do mundo um lugar melhor para os seus filhos. Eles continuam me transformando a todo momento, porque ainda tem o fato de os três serem neurodivergentes, cada um com a sua particularidade, o seu mecanismo, a sua forma de pensar.
Estou sempre aprendendo a ser mãe deles. E assim, falo com leveza sobre isso, mas o meu dia a dia não é nada fácil. Imagina ser mãe atípica de três, provedora, artista e preta nesse país. Tem que se virar nos 30, né? Sou uma empresa que não pode nunca parar.
Há algo que você passou e que não quer que se repita com seus filhos?
Uma doença maligna. Porque sei que não é todo mundo que consegue sair vitorioso e, depois do meu diagnóstico, vi pessoas próximas, mais novas do que eu, perderem essa batalha. É algo muito triste. Também não posso nem imaginar como foi para a minha mãe me ver naquela situação. Deve ser muito difícil você ver um filho lutar contra uma iminência de morte. Espero jamais passar por isso com os meus filhos. De resto, tudo faz parte do processo, tudo a gente supera.
Há vários episódios da autobiografia em que você referencia a sua mãe e as suas avós. Essa linhagem foi importante para que você se tornasse quem é?
Foi fundamental. Falo muito das mulheres da minha família porque venho de um berço constituído por mulheres fortes. Cada uma delas, do seu jeito, com os seus saberes, me ajudou a ser quem sou. A vida é feita disso: aprender com as gerações passadas para conseguir ajudar as próximas. Esse é um ciclo muito nítido na minha família.
O que você ainda quer viver?
Tudo! Quero viver tudo. Quero poder exercer todos os talentos que o Criador me deu, continuar contribuindo para as mudanças do mundo, conhecer lugares e pessoas, sentir coisas, amar e ser amada, ver os meus filhos crescerem. Nem há nome para o que quero.
Quer viver, né?
É isso, quero viver. Se depender da minha vontade de viver, vem aí a parte dois do livro (risos).