Jamais viajei sem carregar a sensação de estar causando perturbação à vida de alguém que ficou. Quase sempre, minha mãe. Eu tinha 24 anos quando resolvi conhecer a Europa. Minha primeira viagem para outro continente, levando mil dólares em dinheiro, nomes de amigos de amigos anotados num papel e um passaporte estalando de novo.
Seriam dois meses sem roteiro definido. Não era uma viagem à Lua, nem mesmo uma mudança definitiva, mas soube que, depois que eu cruzei o portão de embarque do aeroporto, minha mãe teve que ser amparada, mal conseguiu caminhar de volta para o carro. Sua garota havia sido convocada para a guerra.
A família preferia que eu estivesse preparando o enxoval, mas eu tinha férias vencidas e férias a vencer, e negociei com meu chefe a junção desses dois períodos. Ele, camarada, garantiu que manteria meu emprego na volta. Então lá fui eu, deixando aquele rastro de tragédia atrás de mim.
Viajar é fuga, sim. Fuga de uma rotina cuja repetição faz parecer que envelhecemos sem sair do lugar. Fuga de nossas reações automáticas diante dos desconfortos da alma. Fuga dos passos previsíveis até chegar à morte. Fuga do relógio, do supermercado, dos sapatos de salto, das aulas de ginástica, dos parentes, das 24 horas supersônicas de cada dia, bom dia e boa noite alternando-se a uma distância de minutos.
Ruas estrangeiras erguem minha cabeça, eu que no dia a dia caminho olhando para o chão, temendo fissuras na calçada. Ao viajar, contemplo obras de Monet em plena tarde de quinta-feira. Dou um mergulho não planejado no mar. Fico bonita usando um vestido de uma cor que achei que não combinava comigo. Descubro que sou simpática com estranhos. Não sinto fome ao meio-dia. Atravesso avenidas como se elas fossem portais, todos os caminhos levam a um lugar que nunca fui, e a coragem confirma que é a minha melhor parceira. Estou tão dentro de mim que não estou ao alcance de ninguém.
Não que desgoste de estar com as pessoas. Conviver é uma aventura; conversar, uma façanha. Mas estar a sós é um prazer quase lisérgico. Sei que uma solidão permanente e indesejada desvirtuaria esse meu discurso e colocaria em pauta um drama que desconheço, mas é boa a sensação de que minha existência não necessita ser confirmada pelos outros de hora em hora. Eu tenho certeza de que existo muito, e existo bem.
Voltar é a confirmação de que os outros importam e de que sou capaz de abdicar de mim para me acomodar a um comportamento padrão. Voltar é sempre uma declaração de amor. Partir é de costas, voltar é de frente, como escreveu Caio Fernando Abreu. Tenho lido muito neste verão, enquanto economizo para mais uma fuga malsucedida. Não adianta, eu sempre volto.