Os irmãos Ethan e Joel Coen já falaram bastante, com propriedade, sobre o pesadelo americano – e os grandes personagens à sombra da mitologia que costuma cultuar apenas os chamados vencedores. Quando estenderam essa reflexão aos bastidores do cinema, em Barton Fink (1991), retrataram Hollywood como um verdadeiro sepulcro da criatividade artística. Em Ave, César!, seu 17º longa, eles mudaram um tantinho o tom, exercitando um humor mais leve, semelhante ao de Arizona Nunca Mais (1987) e Queime Depois de Ler (2008). Como neste último, no entanto, há comentários incisivos contidos em sua visão escrachada da indústria.
O filme que estreia hoje no circuito tem a narrativa situada em pouco mais de um dia dos anos 1950, período final da chamada era de ouro do cinema norte-americano – quando o sistema de produção em linha de montagem revelava algum desgaste. O protagonista é um funcionário da Capitol Pictures (Josh Brolin), que passa o tempo mimando seus astros e estrelas e resolvendo os problemas causados por eles – ou que simplesmente os envolvem, como o sequestro do ator principal da superprodução Ave, César! (George Clooney).
Por trás do crime está uma bizarra organização (os criminosos dos Coen são sempre bizarros) que tem conexões com os comunistas da União Soviética. O ideal é ir entendendo aos poucos as suas motivações, para fruir por completo a elegância dos diálogos (outra marca da dupla) entre a vítima e seus "algozes". Mas pode-se adiantar aqui: a posição do grupo faz lembrar a realidade retratada em Trumbo (2015), cinebiografia do genial roteirista Dalton Trumbo, banido de Hollywood por suas posições políticas.
Na verdade, o humor dúbio com que Ave, César! fala dos sequestradores funciona menos nesse núcleo do que em outras passagens, quando, por exemplo, o protagonista visita os sets dos demais longas-metragens que estão sendo rodados na sede da Capitol Pictures. Há quatro sequências de "filmes dentro do filme" espetaculares pela maneira ao mesmo tempo grandiosa e irônica com que os apresentam – um faroeste, um musical e um dos chamados "musicais aquáticos" daquele tempo, além do épico bíblico que inspirou o título.
Scarlett Johansson como a estrela "doida demais" do tal musical aquático, Alden Ehrenreich na pele do herói abobado do faroeste, Ralph Fiennes vivendo um polido diretor de origem europeia: os Coen moldam seus personagens sobre figuras arquetípicas, mas forçando a barra de modo a escancarar suas idiossincrasias. São como caricaturas a explorar as características mais engraçadas de suas personalidades – chave interessante para fazer o espectador adentrar no espírito da comédia. Dado que essas figuras são encarnadas por artistas talentosos como Tilda Swinton (que interpreta duas jornalistas gêmeas ambiciosas) e Frances McDormand (uma montadora atrapalhada), não há como o resultado ser ruim.
Não que Ave, César! seja tão bom quanto os melhores filmes dos irmãos (Ajuste de Contas, Fargo, Onde os Fracos Não Têm Vez, Inside Llewyn Davis) mas é uma ótima pedida, especialmente para quem gosta de cinema. Para se divertir e, além disso, pensar sobre as engrenagens da máquina de produção de Hollywood em seus momentos de brilho mais intenso.
Festa da cinefilia
Personagens e situações de Ave, César! não são citações explícitas de alguém ou algum projeto, mas há referências claras a atores e filmes da "velha Hollywood":
Esther Williams – A atriz de A Rainha do Mar (1952) inspirou a diva dos "musicais aquáticos" vivida por Scarlett Johansson.
Ernst Lubitsch – O diretor alemão lembra muito o personagem de Ralph Fiennes, e Dorothy Spencer, montadora de quatro filmes seus, a de Frances McDormand.
Gene Kelly – O astro dos musicais inspirou o dançarino interpretado por Channing Tatum. O "filme dentro do filme" de que participa, na espetacular sequência de sapateado que lembra Um Dia em Nova York (1949), é um dos melhores momentos de Ave, César!.
Roy Rodgers – Coube ao ator-caubói de Meu Amigo Trigger (1946) a associação menos edificante: com o ingênuo ator encarnado por Alden Ehrenreich.
Carmen Miranda – A atriz brasileira é citada quando o personagem de Ehrenreich pergunta à estrela vivida por Veronica Osorio como é atuar "com um chapéu de bananas".
Eddie Mannix – O único personagem que de fato existiu é o protagonista: Eddie Mannix (Josh Brolin) foi um produtor e "fixer", espécie de "resolvedor de problemas" comum nos grandes estúdios à época.
Ave, César!
De Ethan e Joel Coen.
Comédia, EUA, 2016, 106min.
Estreia nesta quinta-feira no circuito de cinemas.
Cotação: bom.