
Foi como transformar água em vinho: o que começou como uma série independente financiada por meio de doações hoje é uma das atrações mais assistidas do streaming. A história abordada é bastante conhecida, mas contada de um jeito diferente.
Criada, dirigida e coescrita pelo americano Dallas Jenkins, The Chosen — Os Escolhidos traz uma visão intimista acerca da vida de Jesus (interpretado por Jonathan Roumie) e das histórias individuais daqueles que o cercavam.
O sucesso da série é tão expressivo a ponto de ter episódios exibidos em cinemas — não raro, com sessões lotadas.
No último dia 10 de abril, os dois primeiros episódios da quinta temporada da série estreou nas salas de exibição do Brasil. Intitulada A Última Ceia, a atração foi vista por mais de 300 mil pessoas e arrecadou mais de R$ 6,5 milhões, conforme dados da Comscore.
4 milhões de seguidores nas redes
A estratégia de levar The Chosen ao cinema vem sendo adotada desde a terceira temporada, em 2023. E tem dado certo: de acordo com informações do site Ingresso.com, os episódios das duas últimas temporadas somam mais de 1 milhão de ingressos vendidos só no Brasil, mesmo com uma distribuição mais limitada em comparação com os blockbusters.
Aliás, dados divulgados pelo Ingresso.com dão conta de que apenas em 2024 as redes sociais de The Chosen no país cresceram 140%, acumulando mais de 4 milhões de seguidores. O Brasil é, ainda, a segunda localidade com maior número de visualizações da série, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.
Onde assistir a The Chosen
The Chosen está presente em diferentes plataformas de streaming, como Netflix e Amazon Prime Video, além de um serviço próprio que disponibiliza os episódios. Na TV aberta brasileira, já foi exibida pelo SBT.
O sucesso da série contribui para reposicionar a mensagem cristã em um contexto cultural contemporâneo marcado por secularismo e ceticismo
JEAN MARQUES REGINA
Pesquisador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião
A origem do projeto
Tudo começou em 2017, com um episódio piloto de amostra. Dois anos depois, foi lançada uma campanha de financiamento coletivo que arrecadou mais de US$ 10 milhões, viabilizando a primeira temporada.
Até hoje, essa vaquinha é considerada um dos projetos de crowdfunding do setor de entretenimento mais bem sucedidos da história. Segundo informações da BBC, pelo menos até 2024, os produtores de The Chosen estimavam que o apoio dos espectadores tenha coberto cerca de US$ 100 milhões em despesas da série.

Sobre o que é a série
Com previsão de ter, ao todo, sete temporadas (das quais cinco já foram lançadas), The Chosen narra a história de Jesus Cristo e seus apóstolos, mas não se limitando a retratar apenas os fatos envolvendo o Messias. O diferencial está na abordagem do entorno do protagonista, humanizando seus seguidores e outros personagens secundários. São diferentes pontos de vista dos acontecimentos bíblicos.
Nos primeiros episódios, para se ter ideia, Jesus tem pouco tempo de tela — o que talvez ajude a aumentar o impacto de cada aparição. Jenkins já mencionou em entrevistas que, nesse quesito, há uma inspiração clara em séries como West Wing: Nos Bastidores do Poder para aprimorar a narrativa.
Fenômeno cultural
Para o escritor e delegado Rafael Brodbeck, autor de livros católicos como Devocionário a Cristo Rei, Manual da Santa Missa e Breve História das Antigas Heresias, a série trabalha a humanidade dos personagens bíblicos de modo realista e acessível, sem tirar a grandeza dos eventos sobrenaturais. Consequentemente, a narrativa gera empatia no espectador moderno, muitas vezes distante do estilo de escrita dos Evangelhos.
— A série não é centrada apenas em Jesus, mas na transformação dos seus seguidores, o que convida o espectador também a se transformar — avalia Brodbeck. — É um fenômeno cultural que mostra que ainda há sede de Cristo no mundo.
Pode ser um ponto de partida para a conversão de muitos, especialmente jovens e pessoas distantes da fé
RAFAEL BRODBECK
Escritor e delegado, autor de livros católicos
Para Jean Marques Regina, pesquisador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, o sucesso de The Chosen pode ser atribuído ao que aponta como caráter profundamente humano e inovador ao retratar a figura de Jesus:
— A série consegue se comunicar com um público contemporâneo justamente por apresentar Cristo de maneira próxima, relacional e sensível às inquietações da geração atual. Sua abordagem artística permite uma nova percepção da vida cotidiana dos personagens bíblicos, com quem os espectadores facilmente se identificam, sejam eles religiosos ou não.
Liberdade artística

Aliás, o roteiro toma liberdades para realizar adaptações contemporâneas dos diálogos e passagens bíblicas. Por exemplo, o apóstolo Mateus é retratado como um homem autista. Também há diversidade global, com atores de diferentes cantos do mundo — inclusive a atriz brasileira Lara Silva, que vive Éden, esposa de Simão/Pedro (Shahar Isaac).
Sobre essas adaptações, Brodbeck frisa que é preciso fazer uma distinção entre liberdade artística e adulteração da verdade revelada. Ele destaca que é importante que os fiéis assistam à produção com senso crítico formado, sabendo que se trata de uma obra de ficção inspirada nas Escrituras, não de uma reconstituição fiel palavra por palavra.
— The Chosen toma sim muitas liberdades, criando diálogos inteiros que não estão nas Escrituras, preenchendo lacunas biográficas com imaginação e, por vezes, apresentando personagens com traços psicológicos que não temos como confirmar. — analisa. — No entanto, até agora, a série tem procurado manter-se fiel ao núcleo dos Evangelhos, sem contradizer o que é doutrina.
Série não substitui a Bíblia, diz pesquisador
Jean, o pesquisador, salienta que até o momento essas liberdades são interpretadas como um preenchimento das lacunas existentes na narrativa bíblica, permitindo que o espectador capture o contexto histórico, social e psicológico das personagens com maior profundidade.
— Parece-me que as escolhas artísticas à parte do registro específico das Escrituras não configuram heresias nem alterações doutrinárias, mas sim uma criatividade legítima e plausível — pontua Jean.
Por outro lado, ele acrescenta que a série não substitui a Bíblia e seu registro como "a palavra inspirada e única fonte absolutamente confiável".
A qualidade da ambientação e da fotografia é outro ponto considerado positivo de The Chosen. Jenkins disse em entrevista à BBC que a série recorre a um "estilo europeu de filmagem”, que seria "um pouco mais natural".

Mensagem cristã reposicionada
De qualquer maneira, os fiéis e pesquisadores religiosos enxergam uma grande importância no sucesso de The Chosen. Para Jean, a afirmação da série promove "um significativo impacto cultural e espiritual".
— O sucesso da série contribui para reposicionar a mensagem cristã em um contexto cultural contemporâneo marcado por secularismo e ceticismo, abrindo espaço para diálogos relevantes sobre fé, moralidade, espiritualidade e esperança — sublinha.
Na avaliação de Brodbeck, as conquistas de The Chosen provam que a fé ainda "comove, evangeliza e tem espaço mesmo na cultura de massa". Seu sucesso também desafia os católicos e cristãos em geral a investir mais na excelência artística, sem abandonar a fidelidade à fé.
— Pode ser um ponto de partida para a conversão de muitos, especialmente jovens e pessoas distantes da fé. Claro, a série não substitui a leitura dos Evangelhos nem a formação doutrinal, mas pode acender o desejo de conhecer mais profundamente a vida de Jesus — reflete Brodbeck.