Se Nelson Freire fosse um esportista, seria o mais próximo de um Pelé ou de um Ayrton Senna de que a música clássica poderia se aproximar. Tudo isso porque esse mineiro de Boa Esperança se tornou um dos maiores pianistas do século 20, e agora do 21, apresentando-se nas mais prestigiadas salas de concerto do mundo. Em um país no qual a cultura se projeta apesar de dificuldades de todo tipo e em que a música de concerto é vista por alguns – equivocadamente – como diversão para uma elite, Freire é uma espécie de herói nacional.
De volta a Porto Alegre, o pianista se apresenta neste domingo (8) e nesta segunda-feira (9) ao lado da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro (veja o serviço completo abaixo), homenageando a ex-diretora do teatro, Eva Sopher (1923-2018). As apresentações serão conduzidas por Evandro Matté, que assumiu neste ano a direção artística e a regência titular da orquestra. Freire será o solista do Concerto para Piano nº 2, de Chopin, a mesma obra que interpretou em 2014 com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre.
– Como as pessoas, as performances têm vida. Não há perigo de uma ser igual à outra – afirma Freire a Zero Hora por e-mail (leia abaixo a entrevista completa).
O programa também contará com a abertura de As Bodas de Fígaro e a Sinfonia nº 40, ambas de Mozart. Matté, que já se apresentou no mesmo palco que o pianista quando atuava como trompetista da Ospa, rege um concerto com ele pela primeira vez. Para o maestro, o que define Freire como um dos grandes é um conjunto de fatores:
– São a técnica e a sensibilidade aliadas a um talento absurdo. Com trabalho e determinação, chegou à excelência na interpretação. Aos 12 ou 13 anos de idade, já se previa que seria um dos maiores.
Esse tipo de deferência não afetou o temperamento reservado e humilde do músico, como pode ser visto no documentário que leva seu nome, dirigido por João Moreira Salles em 2003. Para Freire, a fama não tem a ver com vaidade, mas com a música.
NELSON FREIRE COM A OCTSP
Domingo (8), às 18h, e segunda-feira (9), às 20h.
Theatro São Pedro (Praça Mal. Deodoro, s/nº), fone (51) 3227-5100, em Porto Alegre.
Ingressos: R$ 80 (galerias), R$ 200 (camarote lateral), R$ 320 (camarote central) e R$ 360 (plateia).
À venda no site vendas.teatrosaopedro.com.br (com taxa) e na bilheteria do teatro.
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Entrevista com Nelson Freire:
“Fico feliz que minha trajetória sirva de exemplo a futuros pianistas”
Sua relação com o Concerto nº 2 de Chopin foi de amor à primeira audição?
O segundo concerto de Chopin talvez seja o meu favorito. Me apaixonei por essa obra aos 13 anos, após ouvi-la interpretada em gravação e também ao vivo pela Guiomar Novaes (1894-1979). Isso foi em 1959. Um ano mais tarde, já na Europa, num curso de verão do meu professor (Bruno) Seidlhofer em Brühl, na Alemanha, tive a oportunidade de tocá-lo pela primeira vez diante de uma plateia de alunos.
Como foi essa experiência?
O interessante é que a parte da orquestra, reduzida a um segundo piano, ficou a cargo de ninguém menos que Martha Argerich, que lá se encontrava a fim de tocar para Seidlhofer as Rapsódias de Brahms, que iria gravar em seu primeiro disco. Nessa ocasião, ficamos muito amigos, e eu lhe sugeri que me acompanhasse no concerto. Ela já era bem famosa, e eu fiquei muito orgulhoso dessa performance.
Desde 2014, quando o senhor tocou esta obra em Porto Alegre com a Ospa, o que mudou na sua maneira de interpretá-la em relação ao que veremos agora com a Orquestra do Theatro São Pedro?
Acabo de voltar da China, onde toquei esse concerto e devo repeti-lo no Rio no dia 22, junto com o nº 2 de Brahms, que é outro velho companheiro desde meus 14 anos. É verdade, o repertório torna-se sua família com o passar dos anos. Como pessoas, as performances têm vida. Não há perigo de uma ser igual à outra. Pequenas sutilezas, diferentes ênfases, teatros, estado de espírito, público, tudo contribui para que cada concerto seja único.
O público o considera uma espécie de herói nacional em um país marcado pela falta de oportunidades e pelo desincentivo à arte e ao conhecimento. O senhor se vê exercendo um papel de influência para as novas gerações?
Fico muito feliz que minha trajetória sirva de exemplo a futuros pianistas. Tive a sorte de contar com a inspiração e o incentivo de grandes artistas e sei como isso foi fundamental na minha carreira.
A vaidade costuma ser associada ao fazer artístico, mas o crítico Norman Lebrecht se referiu ao senhor como "um artista sem ego". Identifica-se com esta definição?
Não sou vaidoso, não por virtude, mas por sempre achar que poderia fazer melhor. Minha realização consiste em encontrar novas ideias, "enxergar" mais dentro da música. Consequentemente, me conhecer melhor e assim ter uma verdadeira relação de amor com a música.
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Discografia selecionada
The Piano Concertos (Decca, 2006)
O que poderia dar errado no encontro de Nelson Freire com o grande maestro Riccardo Chailly regendo a não menos prestigiada Gewandhausorchester, de Leipzig, para registrar os Concertos para Piano nos. 1 e 2 de Brahms? O álbum foi considerado a gravação do ano de 2007 pela Gramophone. "Esse é o conjunto de concertos para piano de Brahms pelo qual estávamos aguardando", escreveu a revista inglesa.
The Nocturnes (Decca, 2010)
Uma das 50 maiores gravações de Chopin de todos os tempos segundo a Gramophone, este álbum duplo encontra Freire em sua melhor forma. Para a publicação internacional, estes noturnos são "incansavelmente experimentais, um mundo opalescente de atmosferas e cores mutantes". Se você tem dúvida sobre por onde começar, comece pelo início, com o Noturno em Si Bemol Menor, op. 9, nº 1.
The Complete Columbia Album Collection (Sony Classical, 2014)
Se você quiser se deliciar com o jovem Nelson Freire, nada melhor do que mergulhar nesta caixa com seis álbuns, um deles duplo, gravados entre as décadas de 1960, quando o pianista assombrou o mundo, e 1980. Três títulos aparecem pela primeira vez em CD. Aqui estão registros solo e acompanhado por orquestra de obras de compositores como Tchaikovsky, Grieg, Liszt, Chopin e Schumann.
Piano Concerto nº 2 (Decca, 2015)
Para quem assistirá a Freire em Porto Alegre, nada melhor do que se preparar (e, depois, recordar) com esta recente gravação do segundo concerto para piano de Chopin acompanhado da Gürzenich-Orchester, de Colônia, sob a batuta de Lionel Bringuier. Para quem não vai ao São Pedro, ouvir este álbum é mais do que um consolo: é uma terapia musical. Acompanha outras peças de Chopin.