Há 96 anos, a primeira música sertaneja era gravada: a moda de viola Jorginho do Sertão (1929), composição de Cornélio Pires, a partir de um causo do folclore, interpretada por Mariano e Caçula.
Na canção, o personagem que dá nome à obra vai trabalhar em uma roça de café e por lá acaba sendo convidado para se casar com uma das três filhas do dono das terras. Em dúvida, pega o seu cavalo e dá no pé.
Corta para o verão 2024/2025. A música que domina as praias brasileiras é o hit-chiclete Descer pra BC, interpretado por Brenno e Matheus em parceria com DJ Ari SL — este também o produtor da canção, que foi composta por João Dalzoto.
Em menos de três minutos, a faixa fala sobre um herdeiro que, apesar de ser filho de alguém do campo, quer usar a grana que ganhou para curtir o litoral ("Prefiro pé na areia do que pé no capim").
Jorginho do Sertão e Descer pra BC parecem universos completamente distintos. Se isolar o instrumental de ambas, provavelmente o ouvinte não entenderia como pertencentes ao mesmo gênero musical.
Sai o caipira, entra o playboy
A viola deu espaço para batidas eletrônicas e até mesmo para o funk. Já na letra o caipira foi substituído pelo playboy. Mas isso tudo faz parte da evolução constante do sertanejo, que passa por um processo de absorção de outros ritmos desde seus primórdios.
— Se procurar um sertanejo puro mesmo, talvez nunca ache. O sertanejo nunca deixou de agregar outros gêneros, e essa característica fez com que se mantivesse — diz o jornalista especializado em sertanejo André Piunti.
Ele exemplifica:
— Se os ritmos lá de trás já eram uma mistura de música africana com indígena e portuguesa, então nunca foi algo 100% puro. Pelo menos desde a década de 1950. Naquela época, as versões de música paraguaia entraram com tudo. Tinha Cascatinha e Inhana cantando Índio e Meu Primeiro Amor.
O profissional ressalta que nos anos 1970 a dupla Milionário e José Rico foi influenciada pela música mexicana, baseando boa parte da sua carreira na mistura latina.
Na década seguinte, houve a invasão do bolero e, a partir de 1990, o romântico chegou com força, carregado pelos nomes que formariam depois o grupo Amigos — Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, e Zezé Di Camargo e Luciano. E por ali o pop também se faz presente.
Nos anos 2000, entra a guitarra e até mesmo o axé. Um pouco mais para a frente, o funk também começa a ganhar destaque no meio.
O especialista em marketing de música e pesquisador Breno Kruse acrescenta que, apesar das transformações, alguns elementos se mantêm:
— O sertanejo de hoje é estranhamente parecido com o de 60 anos atrás. Se formos pensar em termos de produção musical, a gente está vendo um hit de agora (Descer pra BC) e a sanfona está ali, as duas vozes também. Décadas atrás, Tião Carreiro e Pardinho cantavam sobre vida no campo, cachaça, dor de corno e ser fodão. A vida no campo sumiu, mas cachaça, dor de corno e ser fodão estão mais fortes do que nunca.
Conflito entre gerações
O conflito entre gerações também é uma constante. O pesquisador explica que a geração dos anos 1930 não gostava da turma de 1940. E, nos anos 1960, Tonico e Tinoco foram amplamente criticados pelos ditos tradicionalistas porque usavam chapéu de caubói, e não de caipira — os músicos, inclusive, fizeram um filme de bangue-bangue, Os Três Justiceiros (1972).
Na década seguinte, Milionário e José Rico começaram a usar as cornetas dos mariachis e, segundo o pesquisador, foi a vez de Tonico e Tinoco criticarem — afinal, os mais jovens estariam descaracterizando a música sertaneja. O mesmo ocorreu quando chegou a geração dos Amigos, usando guitarra e teclado, levando o rock e "americanizando" o caipira.
— A geração atual sempre é detonada pela geração anterior. O sertanejo tem a característica de agregar novos ritmos. E essa é a razão pela qual o sertanejo nunca deixou de ser pop — ressalta Kruse. — Chitãozinho e Xororó, por exemplo, falaram: "Opa, está aparecendo uma galera nova, venham aqui cantar com a gente". Eles começaram a usar os feats (participações especiais), que não eram tradicionais no sertanejo, como uma ferramenta de marketing. Foram pioneiros, e os caras da geração nova aprenderam isso e ampliaram.
Globalização e dinheiro
As transformações não foram apenas musicais, mas também temáticas. Ao ser questionado em 2012, em entrevista à Folha de S.Paulo, se a música sertaneja estaria mudando ao longo dos anos, o músico Renato Teixeira cravou que não via "diferença alguma":
— A música caipira sempre foi a mesma. É uma música que espelha a vida do homem no campo, e a música não mente. O que mudou não foi a música, mas a vida no campo.
A explicação vai ao encontro do que dizem hoje os especialistas. O que é retratado nas músicas mais modernas do sertanejo é resultado da globalização e do dinheiro que o agro ganhou nos últimos tempos.
A solidão do camponês e suas dificuldades com a boiada deram espaço para a tecnologia, os carrões e as aventuras na cidade grande — a ostentação da vida digital. Se voltarmos às letras de Jorginho do Sertão e Descer pra BC, estão lá o romance e o interior, abordados de maneiras diferentes, mas presentes.
Mulheres se fazem ouvir
Se o sertanejo passou por mudanças ao agregar novos ritmos, foi há pouco mais de uma década que outro fenômeno chegou para mudar tudo: o feminejo.
A gaúcha Bibiana Bolacell tem 16 anos de carreira e entrou no universo do sertanejo com a intenção de se tornar uma artista nacional. Ela acredita que a abertura da mente da sociedade e o fim do monopólio das gravadoras devido ao advento da internet, deixando de definir quem faz sucesso, foram os elementos que abriram as portas para que novas vozes pudessem ser ouvidas.
— Tudo ajudou. A gente foi ficando mais moderno, desde quando o sertanejo entrou nas universidades, com o João Bosco e Vinícius. A linguagem foi ficando mais atual e a mulherada, devagarinho, foi derrubando as barreiras, pois sempre teve essa resistência. A mulherada está se unindo, o que é fundamental para que a gente tenha cada vez mais força — avalia Bibiana.
Os diferentes coexistem
O fato de o sertanejo ser atualmente gênero mais ouvido do país — dominando as rádios, segundo relatório do Crowley, além de estar entre os destaques de 2024 no streaming — dá liberdade para que se aposte em novos nomes.
Por isso, de acordo com Kruse, as mulheres — que outrora eram poucas neste universo — vêm tendo mais espaço, caminhando juntamente com uma sociedade mais madura.
Assim, a entrada de novos gêneros e novas vozes no sertanejo, segundo os especialistas, são importantes para atrair os jovens. O modão de antigamente segue existindo, mas seus desdobramentos são atrativos devido ao ingresso dessas novas batidas e temáticas. E isso é importante para os veteranos da indústria, que estão vivendo um grande momento.
— Nunca se teve a oportunidade de ouvir tanta música sertaneja diferente. Tem os meninos do Descer pra BC, mas tem ao mesmo tempo o Jorge e Matheus, que não têm nada a ver com eles. Você vai olhar a agenda do Di Paullo e Paulino e está lotada. Lourenço e Lourival, dupla em que os dois têm mais de 80 anos, também — analisa Piunti.
Para o jornalista, "o sertanejo está distante do que se fazia, que era, basicamente, viola e violão, mas também muito mais amplo":
— Se por um lado tem uma música que incomoda por ser muito moderna, essa galera nova fez mais festas receberem sertanejo, tem mais gente contratando shows. Abriu mais o mercado para quem faz sertanejo de qualquer tipo.