Como condensar quase 50 anos em 448 páginas? Este foi o tamanho do desafio de Marcos Salles, jornalista, escritor, produtor, roteirista, diretor de shows e, principalmente, um fã do Fundo de Quintal. Salles foi o único nome unânime entre os integrantes do grupo, entre tantos que já quiseram contar a trajetória da turma que se formou na quadra do bloco Cacique de Ramos, no Rio de Janeiro, e ganhou o Brasil.
O livro Fundo de Quintal – O Som que Mudou a História do Samba (Editora Malê), que já está nas livrarias de todo o país — virtuais e físicas — resgata desde os primórdios do grupo, ainda na década de 1960, até o nome da banda ser sugerido por "Valdomiro, técnico da gravadora TapeCar", ao se dar conta de que o som dos sambistas estava se espalhando e "sempre no quintal das pessoas". O batismo ocorreu em 26 de junho de 1976, na casa de Elza Soares, que comemorava o seu aniversário.
Mesmo sem a intenção de produzir discos, eles acabaram gravando com Beth Carvalho e, em 1980, realizaram o seu primeiro LP, Samba é No Fundo de Quintal. Foi por esta fase em que Marcos Salles foi ao seu primeiro show — mais especificamente em 1984, época do lançamento do LP Seja Sambista Também — e, desde então, passou a conviver com os membros do grupo, trabalhando com eles em alguns momentos, inclusive.
Desde a primeira formação do Fundo de Quintal, 19 músicos já integraram o grupo. Nomes como Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Almir Guineto, Sombrinha e Ubirany demonstraram os seus talentos, assim como, é claro, Bira Presidente e Sereno — dupla que está desde o início do projeto. Para contar toda esta caminhada, o biógrafo realizou 161 entrevistas, que totalizaram 116 horas de gravações transformadas em livro durante três anos e 11 meses — além disso, foram quase dois de espera para o lançamento da obra, por causa da pandemia.
— Nunca tinha passado pela minha cabeça escrever um livro, ainda mais um livro do Fundo de Quintal. Mas como vivia com eles o tempo todo, foi muito confortável para mim. Outro dia, me perguntaram se eu tive algum obstáculo. Não tive obstáculo algum, porque esse é o meu meio: a música. Sempre fui profissionalmente dividido entre o jornalismo e a música — garante Salles.
Esta sua relação com a música, inclusive, lhe dá confiança para abordar, na obra, a diferença entre o samba e o pagode: e ele ressalta que simplesmente não há, uma vez que samba é o gênero musical e pagode é a reunião de pessoas para fazer este tipo de som.
— Lá atrás, naquelas famosas quartas-feiras, ninguém falava "vamos à roda de samba do Cacique de Ramos". Ninguém falava isso. Falavam "vamos no pagode do Cacique", porque aquilo é um pagode. É a reunião. Então, o que o Thiaguinho toca é samba e o que o Zeca Pagodinho toca é samba. Só que cada um toca de um jeito — explica.
Conhecedor
A proximidade de Salles com o Fundo de Quintal é tanta que o autor não fez pesquisa para escrever a obra. Usou as entrevistas e o seu conhecimento de quase quatro décadas acompanhando o grupo de perto. Assim, ouviu artistas do calibre de Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Rildo Hora, Leci Brandão, Anderson Leonardo, Elza Soares, Jairzinho, Líber Gadelha, Mílton Manhães, além de muitos outros músicos, compositores, integrantes e seus familiares.
O seu trabalho foi de março de 2017 até dezembro de 2020, mas, com a morte de Ubirany, integrante e fundador do Fundo de Quintal, no dia 11 daquele mesmo mês, Salles teve de rever a parte que falava do criador do repique de mão. Assim, o texto completo e atualizado foi entregue à editora em fevereiro de 2021. E, nele, mesmo com a responsabilidade de contar a história do grupo, das curiosidades e dos temas polêmicos, Salles explica que utilizou uma linguagem que ele acredita ser a ideal para a sua narrativa: a da conversa.
— O jeito que escrevo é como se eu estivesse falando. É o que aprendi com meu pai, que foi um grande jornalista, Milton Salles, e um cara chamado Carlos Maranhão, que era da revista Placar. Ambos escreviam meio parecido. Então, ler o livro é como se eu estivesse conversando com quem está lendo. Essa é a ideia. E todo mundo está gostando. Para mim, cumpri a meta, fiz o gol — explica.
Agora, ele pretende levar esta técnica para as outras biografias que está escrevendo — e todas ao mesmo tempo: as dos ex-Fundo Almir Guineto (1946-2017), Arlindo Cruz e Sombrinha, e da grande partideira Jovelina Pérola Negra (1944-1998). Sobre as histórias que estão no livro do Fundo de Quintal, Salles faz suspense: começa a contar elas e, depois, convida a ler a obra. Mas já adianta um esclarecimento sobre a lenda do banjo "criado" por Guineto, bem como o que fez o grupo se manter com tantas saídas de integrantes, problemas de saúde dos mesmos e, também, cita questões envolvendo drogas.
Mas, principalmente, ele revela como que o grupo conseguiu se manter relevante por tantas décadas, furando a bolha do Rio de Janeiro e conquistando o Brasil inteiro:
— O repertório deles é ouro. Eles podem ficar fazendo a carreira só em cima dos cinco primeiros discos. É fantástico. Claro que posso gostar de um samba que você não gosta, você pode gostar de um que não acho tão bom assim. Mas a média deles é muito acima de tudo, tanto que eles continuam viajando até hoje. O Bira Presidente tem 85 anos, o Sereno, 84. E eles não param de fazer shows.
Assim, tal qual a música do Fundo de Quintal, tanto o grupo quanto o biógrafo sabem que "o show tem que continuar", para manter o samba, o mais brasileiro dos gêneros musicais, cada vez mais vivo. Em fevereiro, um evento deve marcar o lançamento da biografia em Porto Alegre.