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Nesta quinta-feira (10), completam-se cem anos do nascimento de Clarice Lispector (1920-1977). Para celebrar a data, diferentes instituições promovem uma programação virtual intensa dentro e fora do Brasil. Mais do que festejar o passado, debates e leituras apontam caminhos para o futuro da obra da escritora.
— Clarice não se deixou dominar pelos limites do seu tempo. Sua obra propõe questões que começam a ser discutidas com mais intensidade só agora. Ela contesta leituras hegemônicas da realidade, e vivemos hoje um momento de contestação das leituras dominantes. Seu trabalho abarca uma visão do não humano, por exemplo, que começa a ser valorizada agora, em que se questiona o homem como centro de tudo — avalia o professor João Biehl, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, em conversa com ZH.
Gaúcho de Picada Café, Biehl leciona em Princeton há 20 anos — é também diretor do Brazil Lab, um centro de estudos da cultura luso-afro-brasileira. Por meio da iniciativa, a Universidade de Princeton acaba de lançar, em homenagem ao centenário de Clarice, a biblioteca de áudios Clarice 100 Ears.
A coleção de gravações foi criada pela professora Marília Librandi, autora de Escrever de Ouvido: Clarice Lispector e os Romances da Escuta, publicado originalmente em inglês e recém-lançado no Brasil pela Relicário Edições. Há áudios da americana Jhumpa Lahiri, autora vencedora do Pulitzer; Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice; Keijiro Suga, poeta japonês; e mais dezenas de convidados.
A diversidade de nacionalidades ilustra a expansão do trabalho de Clarice no mundo. A autora conta com traduções para 32 idiomas circulando em 40 países.
— O fato de ser ser mulher e problematizar a questão feminina internacionalizou Clarice mais cedo. Desde os anos 1980, ela é lida fora do Brasil, depois que foi descoberta por escritoras francesas. Hoje é a escritora de língua portuguesa mais lida no mundo — afirma Biehl.
Programação especial
Clarice 100 Ears está no ar desde novembro, quando o Brazil Lab iniciou uma série de homenagens à escritora, que contou com show de Moreno Veloso e participação de Maria Bethânia — a gravação pode ser vista no canal do Brazil Lab no YouTube. Para festejar o centenário, será publicado nesta quinta-feira no canal um vídeo com um convidado especial: Chico Buarque lendo a crônica Águas do Mar com exclusividade para o projeto.
No Brasil, a editora Rocco tem relançado desde 2019 a obra da escritora com novo projeto gráfico. Agora, o catálogo repaginado ficou completo com a chegada de uma edição especial de A Hora da Estrela. A Rocco agendou uma programação especial para esta quinta-feira nas redes sociais da editora. Começa com a live, às 11h, de Teresa Montero, biógrafa de Clarice que está preparando o relançamento de Eu Sou uma Pergunta: Uma Biografia sobre Clarice Lispector. Em seguida, será exibido um vídeo de Zélia Duncan com a leitura do livro Todas as Cartas, lançado em setembro. O editor da obra da autora na Rocco, Pedro Vasquez, também fará uma live às 14h. Já às 15h, será retransmitido um debate com as escritoras Guiomar de Grammont e Nélida Piñon.
Além disso, a editora também lança um podcast inédito sobre A Hora da Estrela, com André Paes Leme e Laila Garin, diretor e atriz da adaptação do texto em musical. Às 19h, será exibido um minidocumentário com Victor Burton sobre o novo projeto gráfico dos livros. Para fechar o dia, a vigília Clarice 100 Anos promove um sarau virtual. A função começa às 22h e deve seguir madrugada adentro.
O Instituto Moreira Salles (IMS) também aproveitará o dia para fazer homenagens. Nesta quinta-feira, entra no ar o novo site bilíngue sobre a escritora. Trata-se de um portal com fotos, manuscritos, áudios, vídeos, cartas, aulas e textos críticos, em grande parte do acervo de Clarice, sob a guarda do IMS desde 2004.
Para João Biehl, a obra de Clarice deve ressoar cada vez mais forte no Brasil e no mundo ao longo dos próximos anos:
— Clarice realmente inventou algo novo na linguagem. Seu texto tem uma franqueza única. A condição humana está ali exposta em sua crueza, complexidade e incompletude. E ela resiste a qualquer tentativa de enquadramento. É uma linguagem que permite o sujeito se reconhecer no limite da sua humanidade, mas sem ser paralisado. É uma literatura capaz de prospectar o futuro.
Também está marcado para esta quinta, a partir das 19h, um evento virtual organizado pela Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre. Na celebração, a atriz Sandra Possani fará a leitura de algumas crônicas do livro A Descoberta do Mundo e trechos de obras emblemáticas da autora, como Paixão Segundo GH e Água Viva. Também participam a pesquisadora Débora Matter, que fará comentários sobre os textos, e a cantora e violinista Júlia Reis, que apresentará canções como Clarice, Oração ao Tempo e Tigresa, de Caetano Veloso, e Que Deus o Venha, de Cazuza. A transmissão será feita pelo canal do YouTube da Coordenação de Artes Cênicas.