No interior do Rio Grande do Sul, livreiros usam a criatividade para manter as portas abertas, tornando-se ponto de encontro entre amigos, palco para debates e até galeria para preservar a memória local. Conheça iniciativas de diferentes cidades do Estado.
Resistência em São Francisco de Paula
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Uma das maiores livrarias do Rio Grande do Sul está localizada em uma cidade com 20 mil habitantes. Em São Francisco de Paula, a Miragem reúne em três andares livros novos, sebo, bazar, lancheria e espaço para eventos. A iniciativa foi criada em 2000 pela professora aposentada Luciana Soares, que já perdeu a conta do número de livros de seu acervo, que se espalha por 2 mil metros quadrados.
– Não sou boa com números – resume Luciana.
A livraria paga suas contas em dezembro, janeiro, fevereiro e julho. O resto é um Deus nos acuda.
LUCIANA OLGA SOARES, DONA DA LIVRARIA MIRAGEM, EM SÃO FRANCISCO DE PAULA
Um passeio pela Miragem é suficiente para confirmar que números não são o foco. O acervo da casa é vasto e diversificado, contemplando desde clássicos da literatura universal até novas apostas de pequenas editoras. Para manter as estantes sempre atualizadas, Luciana viaja pelo menos uma vez ao mês a Porto Alegre, visitando distribuidoras e livrarias. Não é difícil concluir que muito pouco do que é trazido consegue ser vendido, já que o público leitor da cidade não é tão numeroso. As contas fecham no vermelho na maior parte do ano.
– A livraria paga suas contas em dezembro, janeiro, fevereiro e julho. O resto é um Deus nos acuda – diz Luciana.
O primeiro objetivo da Miragem não é gerar lucro financeiro, mas ser um ponto de preservação da cultura e dos valores sob os quais Luciana foi criada. Herdeira de estancieiros da região, ela formou-se em História e se aposentou como professora.
– Depois de me aposentar, resolvi fazer uma livraria para retribuir um pouco para essa região o muito que ela me deu – conta Luciana. – Logo percebi que nossa cultura iria terminar. Então fiz um esforço gigantesco para construir esse espaço.
A região tem transformado sua economia nos últimos anos, e a pecuária extensiva está dando lugar ao cultivo de pinus e batata, colocando em xeque o modo de vida tradicional do município, baseado na lida com o gado. Em frente à livraria, Luciana instalou um palanque de amarrar cavalos, e dentro da loja há um ambiente que imita um galpão, onde é guardada a literatura produzida no Estado. Além disso, fotos e documentos históricos da cidade também estão espalhados nos diferentes ambientes.
– Nesta livraria, não tiramos os valores da região para colocar algo novo no lugar. Isso seria destruição, embora alguma pessoas chamem de progresso. Ao contrário, progresso é o que fazemos aqui. Todos os valores da nossa cultura estão preservados neste espaço – conclui Luciana.
Clube de Leitura em Igrejinha
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Não tem café, bazar ou papelaria. A livraria Manas, em Igrejinha, funciona há 25 anos com uma receita baseada 100% na venda de livros. Para sobreviver apenas vendendo novidades do mercado editorial e títulos sob encomenda em uma cidade com pouco mais de 30 mil habitantes, é preciso ir além das estantes e do balcão. O segredo da Manas é ter um bom atendimento, estabelecendo relações de amizade com os clientes, mas também atuar como um misto de centro cultural e agência de viagens.
Todas as atividades servem para que haja um aprofundamento do que é visto nos livros.
NARETE SANTOS, PROPRIETÁRIA DA LIVRARIA MANAS, EM IGREJINHA
A sala comercial não tem dimensões grandiosas, mas acomoda um acervo de quase mil títulos e recebe com conforto as reuniões do seu Clube de Leitura, com 15 integrantes. Com cinco anos de atuação, o clube tem encontros mensais, promovidos algumas vezes fora de Igrejinha. Para debater o livro Londres, de Airton Ortiz, por exemplo, a proprietária, Narete Santos, organizou um encontro com o próprio escritor no restaurante George III, em Gramado, com decoração inspirada no Palácio de Buckingham. Já para marcar a leitura de Por que Fazemos o que Fazemos, de Mário Sérgio Cortella, que demonstra a importância do leitor sair da rotina, foi organizada uma excursão a Porto Alegre, com passeio no Guaíba. As iniciativas fortalecem a relação dos leitores entre si e com a livraria.
– Igrejinha é uma cidade de colonização alemã, o que às vezes colabora para que a população seja mais retraída. Então os encontros do Clube servem para a gente conversar e debater o livros, mas também para visitar espaços muita gente demoraria a visitar sozinha – avalia Narete.
A livraria também organiza eventualmente caminhadas e piqueniques literários junto a colégios. Além disso, promove encontros com leitores que não fazem parte do Clube – nos próximos dias, deve reunir fãs da série Harry Potter para um passeio em Porto Alegre, a fim de conhecer a Sala Precisa, café baseado na série de J. K. Rowling.
Para Narete, o passado como educadora é fundamental na hora de criar atividades que aprofundam a experiência de leitura. Ela e a irmã Nádia, morta há dois anos, atuavam como professoras antes de abrirem a loja em parceria – por isso o espaço foi batizado de de Manas. Hoje, é a mãe de Narete, Amélia Inácio de Souza, quem auxilia no dia a dia da livraria.
– Nada é aleatório. Todas as atividades servem para que haja um aprofundamento do que é visto nos livros – assegura Narete.
Livros e café em Santa Cruz do Sul
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Há quase duas décadas, Cristine Dahmer começou um negócio pequeno, com ajuda de apenas um funcionário, oferecendo cafés e lanches para uma livraria de sua cidade. Em pouco tempo, mas com muito trabalho, ela comprou a loja para a qual prestava serviço, mudou para um ponto maior e agora conta com 10 funcionários.
A Iluminura, livraria e café que Cris administra em parceria com o marido, Bráulio Vogt, se consolidou em Santa Cruz do Sul oferecendo um ambiente único no município. Com 120 m², a loja acomoda cerca de 5 mil livros. Os corredores e mesas são espaçosos, e a decoração usa madeiras sólidas e tons de areia. Quem entra para tomar um café pode deter a atenção em alguma novidade editorial das estantes ou simplesmente deixar a mente vagar pelo ambiente calmo.
Não consigo pensar na Iluminura somente como livraria ou somente como café. Ambos se complementam e geram fluxo de clientes de um para o outro.
CRISTINE DAHMER, DONA DA LIVRARIA ILUMINURA, EM SANTA CRUZ DO SUL
– Nas oportunidades que pude estar fora de Santa Cruz, sempre visitei espaços como esse. Trabalhar em um deles é algo que me realiza. E também ouço muita gente dizer que gosta de estar aqui por que é como estar fora, em viagem – conta Cris.
Café e livraria se complementam para gerar receita e manter o negócio sem entrar no vermelho. Normalmente os livros são responsáveis por 70% das entradas em caixa, mas a porcentagem pode cair para 50% em alguns meses.
– Não consigo pensar na Iluminura somente como livraria ou somente como café. Ambos se complementam e geram fluxo de clientes de um para o outro – explica Cris.
Além do espaço diferenciado, a casa conta com um cardápio exclusivo de doces e tortas, com praticamente todas as opções produzidas no local. Os cafés têm grãos e torrefações especiais, selecionados por Cris e trazidos de distribuidores de Porto Alegre.
Com esses atrativos, a Iluminura é uma das únicas livrarias visitadas pela reportagem em que a promoção de eventos não está entre as principais metas para atrair público.
– Receber debates e sessões de autógrafos não é essencial para a manutenção da livraria, mas gostamos de participar da cena cultural da cidade. Nossa agenda de eventos já foi muito agitada, no entanto sempre estamos abertos para a sugestão de encontros – afirma Cris.
Jogos e literatura em Bagé
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É em Bagé, quase na fronteira com o Uruguai, que prospera um dos projetos mais originais de livraria do Rio Grande do Sul. Desde de 2014, a Café & Prosa Livraria agita os dias – e eventualmente as madrugadas – da cidade bicentenária.
O espaço foi idealizado por Lissandro Torres, que sempre teve dificuldade para encontrar na região álbuns de quadrinhos e literatura de horror, fantasia e ficção científica. Ao conseguir uma sala com 250 metros quadrados, ele percebeu que poderia empreender algo a mais do que uma livraria com um serviço de café. Foi assim que o negócio se tornou também uma tabuleria, ou seja, um local com mesas especiais para jogos analógicos e RPGs.
É fundamental fazer eventos para atrair público. E o Insônia é o nosso maior sucesso (...). À tardinha, muitas famílias participam, mas na noite e na madrugada começam a chegar as turmas de amigos.
LISSANDRO TORRES, DONO DA CAFÉ & PROSA LIVRARIA, EM BAGÉ
– Percebi que a cidade tinha uma demanda por esse tipo de negócio. Estamos recriando uma cultura que foi muito forte no passado. A geração que viveu os anos 1980 ia muito ao cinema e frequentava muito as bancas de jornais para comprar quadrinho. Esse pessoal continua sedento por essa cultura, e também a repassa para seus filhos. Além disso, Bagé agora é um cidade universitária. Então há um nicho muito forte formado de pessoas de fora daqui – explica Lissandro.
O empresário administra a loja ao lado da mulher, Heloísa Costa Oliveira, e mais cinco funcionários. Em alguns ocasiões, no entanto, é preciso contratar temporariamente instrutores de jogos, como nos encontros Insônia. O evento oferece a cada dois meses uma madrugada repleta de torneios de jogos e música ao vivo – a função começa às 18h e termina só às 6h do dia seguinte.
– É fundamental fazer eventos para atrair público. E o Insônia é o nosso maior sucesso, com gente vindo de Santana do Livramento, Pelotas, Dom Pedrito e outras cidades. À tardinha, muitas famílias participam, mas na noite e na madrugada começam a chegar as turmas de amigos. É muito bacana porque contempla diferentes faixas etárias – avalia Lissandro.
Segundo o idealizador, o Insônia deverá em breve visitar outras cidades. No entanto, apesar da venda de jogos de tabuleiro e RPGs estar em crescimento, os livros continuam sendo a principal fonte de renda da loja, responsável por cerca de 70% do que é recebido em caixa.