Ainda Estou Aqui é o primeiro filme nacional a receber tanto destaque no Oscar — com três indicações, incluindo melhor filme e melhor atriz — na era das redes sociais. E, por isso, o mundo inteiro está conhecendo o poder do engajamento do brasileiro na internet, o que desperta interesse de veículos de imprensa internacionais, mas, também, pode assustar.
O jornal francês Le Monde, por exemplo, foi crítico ao filme estrelado por Walter Salles e, por isso, recebeu uma enxurrada de respostas dos compatriotas do diretor de Ainda Estou Aqui. Mais de 21 mil comentários ofensivos foram apagados do Instagram da publicação — muito acima da média, que era de 700. Entre as mensagens, algumas que acusavam os franceses de não tomarem banho.
Mas se os europeus tiveram este tipo de experiência negativa, outros veículos estão entrando na onda brasileira — como alguns artistas recentemente surfaram, como Vincent Martella, o Greg de Todo Mundo Odeia o Chris. Grandes revistas de entretenimento estadunidenses, como a The Hollywood Reporter e a Variety, estão usando fotos de Fernanda Torres como destaque em suas matérias — mesmo em textos em que a brasileira nem é a protagonista.
Este fenômeno (engajamento nas redes sociais), como nunca ocorreu antes nas redes sociais, é muito difícil de se prever para onde vai
STEPHANIE ESPINDOLA
Crítica de cinema e cofundadora do portal Emerald Corp
E, se for ver nas redes sociais destes mesmos veículos, a maioria das publicações envolvendo o filme brasileiro consegue ter 10, 15 vezes mais reações que as outras postagens. É um fenômeno. E isto é importante por ter, provavelmente, chamado atenção dos votantes do Oscar, que se sentiram instigados a entender do que o filme se tratava — e isto pode ter ajudado as três indicações ao prêmio.
— O brasileiro é muito apaixonado por tudo. Se tem algum representante daqui, seja em qualquer competição, o Brasil vai em peso, com uma alegria que é própria nossa. E os veículos internacionais percebem isso. A atuação dos brasileiros na internet é uma força grande que está empurrando o filme para frente. Está fazendo barulho — acredita Stephanie Espindola, cofundadora do portal Emerald Corp. e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).
Porém, existe o temor que toda esta paixão e determinação em elevar Ainda Estou Aqui possa, também, ter um efeito contrário, prejudicando a campanha do filme. Antes mesmo das indicações ao Oscar do longa-metragem, os brasileiros começaram a acessar os perfis dos votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo prêmio, e colocaram pressão para que se lembrassem do título nacional.
Além disso, os defensores de Fernanda Torres fizeram brincadeiras, recheadas de memes, mas, também, alguns textos mais pesados, em postagens das concorrentes da atriz brasileira. Inclusive, após Karla Sofía Gascón, protagonista de Emilia Pérez, — que disputa contra Ainda Estou Aqui em três categorias do Oscar — relatar que estava sofrendo ataques em suas redes sociais, a intérprete de Eunice Paiva fez uma publicação pedindo para os seus seguidores não tratar ninguém mal e "criar uma coisa de que é um contra o outro", a brasileira ainda afirmou: "Não vamos alimentar o ódio".
E tal movimento não seria positivo nem para Karla e nem para Fernanda, visto que poderia parecer, para a Academia, que justamente as duas atrizes que estão em filmes de língua não-inglesa estariam promovendo este tipo de confronto público. Não é bem-visto para os votantes mais conservadores.
A mensagem da brasileira, aparentemente, foi atendida e, no perfil de Karla, pode-se perceber várias mensagens carinhosas oriundas do Brasil — porém, não durou muito, visto que diversos tweets polêmicos da atriz espanhola terem sido desenterrados. E, com isso, a situação já não tem mais nenhuma relação com o Brasil.
— Tem um pessoal que perde um pouco a linha e acaba levando para um lado que não é necessário. Foi ótimo a Fernanda vir a público dizer que não é legal, que isso não se faz, que a gente tem que focar em ver a indicação como algo positivo e não como uma maneira de ofender as outras pessoas. Só que este fenômeno, como nunca ocorreu antes nas redes sociais, é muito difícil de se prever para onde vai — enfatiza Stephanie.
Mas uma coisa é certa: este tipo de duelo público — do qual Fernanda foi praticamente uma espectadora — beneficiou a campanha de Demi Moore, de A Substância, que, até agora, está sem se envolver em polêmicas graves — apesar de andar muito no limite para descumprir regras da Academia, incluindo uma reunião com Gwyneth Paltrow para falar de Oscar, o que não seria aceitável.
Fazer uma defesa desse filme, dessa atriz, desse diretor, também significa que "eu sou brasileiro"
ENIO PASSIANI
Professor da UFRGS
Entretanto, é importante apontar que a condução da campanha de Fernanda Torres e Ainda Estou Aqui acerta em suas apostas, tanto de data de lançamento no exterior como em ações promocionais do filme, quanto na hora de contornar polêmicas — inclusive, um envolvendo um vídeo da brasileira em blackface. A atriz, segundo veículos especializados, segue no páreo, o que não se pode dizer de Karla, que derreteu a sua reputação.
Sociedade nas redes
Em entrevista recente para a Zero Hora, o sociólogo francês Michel Maffesoli afirmou que sempre viu o Brasil como um "laboratório da pós-modernidade", visto que os brasileiros dão grande importância para a comunidade, estando sempre juntos. Pois bem, este movimento pode ser visto, também, nas redes sociais.
Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS e coordenador do Grupo de Estudos em Cultura, Comunicação e Arte (Gecca-Sul), Enio Passiani acredita que existem hipóteses para ressaltar o fenômeno dos brasileiros nas redes sociais para falar do longa-metragem. E elas estão dentro da discussão política-ideológica, que toma conta do país.
— Os setores mais progressistas estão apoiando o filme, que tem uma temática importante, que coloca o dedo em uma ferida, que é a ditadura militar. E, também, existe a reação da extrema-direita, que promove uma espécie de releitura da história do país, um revisionismo histórico dizendo que não houve golpe militar. O campo da cultura não só reverbera as disputas políticas, como consegue influenciar o campo da política — explica Passiani.
E esta paixão intensa que é observada na internet oriunda dos brasileiros, segundo o pesquisador, não é uma novidade. Durante o governo Getúlio Vargas, por exemplo, Passiani afirma que já se trabalhava com a valorização do pertencimento nacional. Desta forma, era ressaltada a importância do samba e do futebol, o que reverberava, inclusive, para fora do Brasil. Tal fenômeno foi presenciado pelas gerações mais novas com as Olimpíadas e com a Copa do Mundo.
— Isso é parte de uma história. O que ocorre nas redes sociais não são uma completa novidade. O que é novo é que a abrangência, agora, é muito maior e a velocidade é infinitamente maior. As redes sociais meio que emulam um comportamento que é histórico. Vemos, então, os símbolos pátrios em disputa. Você tem uma extrema-direita que, quando vai para a rua, coloca a camisa da Seleção e fala que são os verdadeiros brasileiros. Aí, quando aparece um filme como esse do Walter Salles, os progressistas querem recuperar esse símbolo. Fazer uma defesa desse filme, dessa atriz, desse diretor, também significa que "eu sou brasileiro" — detalha o professor.
E como será que esta paixão disseminada pelos brasileiros na internet — que pode estar vestida de humor ou de violência, que são os tipos de conteúdo que mais engajam — é recebida, em um ponto sociológico, pelos estrangeiros? Será que pode prejudicar a campanha do filme?
— Olhando de uma certa distância, acho que três reações são possíveis. Você pode ter uma simpatia por essa reação, com as pessoas dizendo: "Olha que bacana esse engajamento dos brasileiros em torno do filme". Pode ter a simpatia movida pelo interesse, como os veículos interessados pelo engajamento. E, ainda, uma reação absolutamente oposta, com os norte-americanos não vendo com bons olhos essa, digamos, "intromissão" — analisa Passini.
O Oscar 2025 será entregue em 2 de março. Ainda Estou Aqui concorre nas categorias de melhor filme, melhor atriz (Fernanda Torres) e melhor filme internacional.