No documentário Estou me Guardando Para quando o Carnaval Chegar, em cartaz nos cinemas, o diretor Marcelo Gomes (dos longas de ficção Joaquim e Cinema, Aspirinas e Urubus) visita fábricas caseiras de jeans (conhecidas também como "facções") de Toritama, na região agreste de Pernambuco. Em uma dessas confecções de fundo de quintal, cuja sede tem a tintura da parede descascando e há roupas caoticamente amontoadas pelo chão, está uma mulher beirando os 50 anos, que garante:
– Aqui somos nossos próprios donos. A gente entra e sai a hora que quiser.
Ela relata chegar às 7h, tomar café às 8h30min e ir almoçar em casa às 11h30min. Retorna 13h30min para a confecção e vai ao seu lar novamente às 18h30min para jantar. Chega. Hora de descansar, certo? Errado, ela volta à facção às 19h30min, onde fica até 22h. O diretor questiona o que ela faz quando chega em casa. O telespectador também: como essa pessoa relaxa?
– Tomo banho e fico morta na cama – responde sorridente a trabalhadora autônoma, sem interromper suas atividades durante a conversa.
Mas essa rotina não cansa? Ela é condescendente:
– Cansa, né? Mas a gente ganha mais.
Estou me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar começou a ser pensado pelo diretor pernambucano quando, em uma viagem de carro pelo Agreste, Marcelo avistou outdoors indicando que Toritama é a "capital brasileira do jeans". Ele ficou impressionado. Afinal, era um município pacato que visitava na infância. O choque veio quando lhe sopraram que muitos moradores da localidade vendem o que têm e o que não têm para ir à praia durante o Carnaval. Os questionamentos apareceram.
– Isso seria uma transgressão ao capitalismo? Um ato de desespero? Decidi ir para Toritama e investigar esse fenômeno. Gosto de fazer filmes sobre coisas que não entendo e trazer essa incompreensão ao telespectador. É uma maneira de tentar entender melhor o mundo – relata Marcelo em entrevista a Zero Hora.
O cineasta percebeu ali havia uma boa história para um documentário. Observando a atual geografia da cidade, a pacata Toritama de sua juventude agora era industrializada, caótica e poluída. Após visitar fábricas de grande e pequeno porte, o diretor chegou às facções.
Ao conversar com os trabalhadores dessas confecções caseiras, uma surpresa: eles garantiram ao diretor que adoram aquela vida de trabalho que nunca termina. Ali estava o filme.
– Quando cheguei a Toritama, me pareceu a Inglaterra durante a Revolução Industrial, com um modo de produção arcaico, sem muita consciência do trabalho. Vi que estava enganado. Deparei com a última fase do neoliberalismo, que é promover a ideia do funcionário autônomo, que você é livre por ser dono do seu próprio negócio. Quando, na verdade, é livre para trabalhar 16 horas por dia até morrer – avalia.
Em meio às sequências do barulhento maquinário das confecções, situadas em cafofos apertados e tumultuados por jeans, o documentário apresenta a rotina árdua de trabalhadores das facções de Toritama, que, em seus depoimentos, não manifestam nenhuma insatisfação. Pelo contrário, a mentalidade de trabalho árduo está impregnada nos moradores do município. Suas respostas respaldam essa vocação.
Não é um documentário de denúncia explícita às condições de trabalho, embora essa situação apareça organicamente no filme. Marcelo procurou projetar um retrato mais afetuoso dessa população trabalhadora.
– O que acho singular é mostrar pessoas que estão felizes naquela situação. Isso dá uma rasteira na gente – destaca.
Por isso, o diretor não confronta os entrevistados e se limita ao silêncio:
– Queria que aquilo fosse doloroso, dando espaço à forma como aquelas pessoas veem seu trabalho. É a pintura de algo que está presente para que a gente tire as nossas próprias conclusões.
Entre a folia e o Carnaval
Na reta do final do filme, descobrimos qual é a desforra dos trabalhadores de Toritama. A resposta está entregue no título. Quando se aproxima o Carnaval, a população do município passa a vender seus pertences, como eletrodomésticos e veículos, para curtir alguns dias na praia.
Marcelo decide acompanhar o Carnaval da família de Leonardo, um dos entrevistados mais "pau para toda obra" do documentário. Mas em vez de invadir a casa dele, o diretor lhe entrega uma câmera para filmar o que achasse interessante na folia ou na praia. O resultado é espetacular: são registros de puro deleite, seja nas sequências à beira-mar ou nos festejos que, genuinamente, tomam conta das ruas. Há momentos que beiram o onírico. É fácil o espectador pensar: ok, eles merecem.
– Quem tem mais coerência: aquelas pessoas que usam o Carnaval como um momento desesperador, vendem tudo e vão para a praia, ou aquelas pessoas que vão trabalhar sem pensar no Carnaval? Até que ponto esse ato de vender tudo é insano? Também é insano você trabalhar 14 horas por dia. É insano sua vida ser em função do trabalho. Tem uma série de anacronismos e insanidades naquele universo, mas o que eu queria construir é um afresco daquela cidade que representava todas essas vertentes – pondera Marcelo.
Para o diretor, o documentário é um filme triste, pois pode retratar um futuro próximo:
– Pensei que Toritama era a Inglaterra do século 18, mas pode ser que a cidade aponte para o futuro. O Brasil vai ser uma grande Toritama. Isso é o que nos espera.
Salas e horários: CineBancários (19h) e Sala Norberto Lubisco (15h30).
Assista ao trailer: