
A menos de um mês da Páscoa, o chocolate utilizado nos tradicionais ovos comemorativos virou motivo de debate nas redes sociais. Enquanto parte dos consumidores acredita que a qualidade tem piorado, o tema divide especialistas em chocolate, que enfatizam que há diferentes categorias do produto, para todos os gostos e públicos.
A crise do cacau tem influenciado o cenário atual e abalado negócios, conforme especialistas ouvidos por Zero Hora. A escassez da matéria-prima — relacionada às mudanças climáticas — na África, que produz cerca de 70% do cacau mundial, somada a dificuldades nas plantações brasileiras, fez os preços alcançarem patamares exorbitantes. A situação foi agravada, ainda, por uma década de déficit no valor da commodity.
No Brasil, a legislação estipula que, para um produto ser considerado chocolate, é necessário que tenha no mínimo 25% de derivados de cacau — massa, pasta ou licor de cacau, cacau em pó ou manteiga de cacau. Especialistas consideram a exigência baixa: para eles, bons chocolates começam com 35%, enquanto a grande indústria tende a operar com o mínimo de 25% exigido por lei.
Categorias de chocolate
A especialista no mercado de chocolate brasileiro e consultora em assuntos regulatórios Juliana Ustra avalia que o cenário segue o mesmo há algum tempo. Em sua visão, a qualidade do chocolate no Brasil não piorou de forma generalizada.
A engenheira química esclarece que há duas categorias de chocolate: uma delas é o comum, que utiliza cacau commodity. Há anos, são utilizados recheios, gorduras substitutas à manteiga de cacau, biscoitos, sementes e aromas artificiais como artifícios para reduzir custos, compensar sabor e atender a uma grande fatia de consumidores.
A outra categoria é o chocolate bean to bar/tree to bar (em português, da amêndoa ou árvore à barra), cuja qualidade tem aumentado no Brasil, sendo reconhecido internacionalmente como um dos melhores do mundo. Nela, utiliza-se o cacau fino, que recebe cuidados especiais. Juliana ressalta:
— A grande indústria sempre utilizou o artifício de ter mais açúcar, ter gordura hidrogenada, usar gorduras substitutas. Não acredito que tenha piorado. Acredito que tenha ficado mais caro, sim, porque o preço do cacau commodity aumentou. Mas o comportamento em termos de fórmula permanece similar ao que a gente vem observando no mercado.
Já o movimento bean to bar, explica ela, tem como objetivo a transparência e a sustentabilidade, com foco na qualidade do cacau, aproximando o consumidor do produtor.
Empobrecimento de formulação
Na percepção de Luciana Monteiro, especialista e consultora em chocolates e diretora da Ara Cacao, a qualidade do chocolate utilizado nos ovos de Páscoa de massa tem piorado, com redução da quantidade de cacau.
— A gente já vê esse empobrecimento de formulação acontecendo há mais de uma década. Por conta da crise do cacau, esse movimento tem sido acentuado — pontua.
A percepção é baseada na sua experiência na indústria e no conhecimento técnico e de degustação de produtos. A engenheira de alimentos enfatiza que a legislação dá margem a essa prática.
Embora ainda seja um pequeno nicho, o chocolate bean to bar é elogiado pela especialista por suas formulações mais simples (com poucos ingredientes e sem aditivos, aromatizantes, corantes ou gorduras substitutas) e altas porcentagens de cacau. Os preços, porém, também podem subir no cenário atual.
Alternativas para os fabricantes

Autora do livro Chocolate Protagonista e do blog Chocólatras Online, Zélia Frangioni diz que tem observado uma grande quantidade de reclamações por parte dos consumidores em relação aos produtos das grandes indústrias.
— O foco do chocolate tradicional é vender quantidade e existe uma competição muito grande. Então, as grandes marcas acabam reduzindo a qualidade para disputar no preço — aponta, destacando que as multinacionais operam dessa forma no mundo inteiro.
Segundo ela, a escolha entre as diferentes ofertas de produtos, no final, cabe ao consumidor.
Zélia visualiza três alternativas para os fabricantes frente à pressão dos custos: reduzir a quantidade do produto na embalagem, aumentar o preço ou alterar a formulação.
Entidade garante compromisso com qualidade
Procurada por Zero Hora, a Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Cacau, Amendoim, Balas e Derivados (Abicab) informa que "combina tradição, inovação e respeito ao consumidor", aliando "matéria-prima de qualidade a processos industriais avançados, garantindo produtos saborosos seguros e produzidos de forma responsável". O presidente-executivo da entidade, Jaime Recena, afirma que a fabricação está sujeita a rigorosos controles de qualidade:
— O chocolate aqui produzido não apenas se equipara com grandes marcas globais como se destaca por sua originalidade, sabor e compromisso com sustentabilidade, atendendo a todos os perfis de consumidor com a variedade de itens ofertados.
Ovos de Gramado devem custar até 30% mais
O presidente da Associação de Chocolateiros de Gramado (Achoco), Fabiano Contini, afirma que a indústria da serra gaúcha mantém alto padrão de qualidade e de teor de cacau, geralmente acima do mínimo exigido por lei: em torno de 35% para o chocolate ao leite.
Para dar conta do cenário, porém, a associação prevê um aumento de cerca de 20% a 30% nos preços dos ovos de Páscoa neste ano. Ainda assim, a expectativa é de crescimento de 10% nas vendas em relação ao ano passado, impulsionadas pela crescente demanda por chocolates de qualidade.
— Vai ter o aumento (de preço), isso é normal, mas o que asseguro para o consumidor é que o chocolate de Gramado vai continuar com o padrão de qualidade alto — diz Contini.
Definição de estratégias

Em geral, quando há presença de outras gorduras na massa junto à manteiga de cacau, é provável que o chocolate tenha, no máximo, 25% de cacau, afirma a engenheira de alimentos Natália Diehl.
A especialista, que é responsável pela área de Pesquisa e Desenvolvimento da Prawer, pontua que a empresa de Gramado sempre optou por utilizar mais cacau em suas formulações. No chocolate ao leite, há 38% de manteiga de cacau; no meio amargo, 52%; no amargo, 73%; e no branco, 28%.
A empresa tem buscado otimizar custos para minimizar repasses ao consumidor enquanto mantém a qualidade, conforme Natália. As estratégias incluem novos produtos, aumento do volume de vendas e transparência sobre a nova realidade de valores do cacau.
— Seguimos mantendo nosso chocolate com elevados teores de cacau, aromático, saboroso e utilizando apenas a manteiga de cacau como fonte de gordura, fiéis às nossas declarações em rotulagem, apelo de marca e ao selo de cacau de origem — salienta Natália.
Atenção ao rótulo é essencial

Além das tentativas de diminuir custos, as modificações nos produtos de grandes marcas podem ser motivadas pelo desejo de evitar as lupas de advertência nos rótulos, levando, por vezes, ao uso de substitutos ainda menos saudáveis. Alto teor de gordura saturada, por exemplo, precisa ser indicado com o ícone, mas de gordura trans, que é considerada mais prejudicial à saúde, não.
É o que observa Ana Lúcia Serafim, conselheira do Conselho Regional de Nutrição — 2ª Região (CRN-2) e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS):
— A grande maioria dos ovos de Páscoa tem os selos de "alto em açúcar adicionado" e "alto em gordura saturada". Podemos dizer que algumas marcas, sim, pioraram em relação à utilização de gordura trans (como substituto de gordura saturada).
Há também o problema crescente de produtos "sabor chocolate", que contêm aromatizantes sintéticos e gorduras de origem vegetal. A informação deve estar descrita claramente no rótulo principal, informa a nutricionista. Ana Lúcia adverte que não oferecem os mesmos benefícios à saúde que o cacau, como as vitaminas A e B, flavonoides e polifenóis.
A especialista em chocolate Juliana Ustra alerta, ainda, para a existência de "guloseimas a partir de chocolate", com menor teor de cacau, conforme possibilitado pela legislação, que não são chocolates, mas muitas vezes confundem a população.
Como escolher ovos de Páscoa
A conselheira do CRN-2 alerta que, nos casos de ovos com preços abaixo da média do mercado, deve-se desconfiar que foi retirada a gordura boa do cacau e incluída gordura trans. Ana Lúcia recomenda uma leitura atenta do rótulo e da lista de ingredientes, optando sempre por alimentos com o máximo de ingredientes conhecidos e evitando aditivos e emulsificantes.
A dica da especialista Luciana Monteiro é observar a porcentagem de cacau nas embalagens e a lista de ingredientes, onde o cacau deve aparecer entre os primeiros itens — o que indica que há maior concentração da matéria-prima no produto.
— Se a empresa quer trabalhar com chocolate de melhor qualidade, vai enfatizar isso o tempo todo na comunicação, falando do percentual de cacau, trazendo a lista de ingredientes como destaque, mostrando o processo de fabricação. Quando isso não ocorre, a gente vê claramente: em vez de falar do chocolate, vai vender um brinquedinho que está ali dentro ou vai chamar atenção para a embalagem, entre outras coisas — ressalta a engenheira de alimentos.