Enquanto o Rio Grande do Sul discute medidas mais severas nas regiões com maior incidência de covid-19 para o combate à pandemia de coronavírus, gaúchos que moram em outras partes do mundo passaram pela experiência de total isolamento, ansiedade e espera pela flexibilização das regras. E, mesmo depois de mais de quatro meses do início da situação, eles seguem em alerta, respeitando as determinações das autoridades locais. Tudo para conter o avanço da covid-19.
Quatro gaúchas que moram em Londres, na Inglaterra, em Queenstown, na Nova Zelândia, em Sydney, na Austrália, e na Galícia, na Espanha, contam como enfrentaram o modelo mais rígido de restrições para a circulação de pessoas e o funcionamento de serviços: o lockdown.
"Está tudo, praticamente, deserto"
Desenvolvedora de software, Karen Garcia dos Santos, de 23 anos, que vive há quase dois anos em Sydney, na Austrália, pretendia voltar pela primeira vez ao Brasil neste mês para rever os familiares em Guaíba, na Região Metropolitana. Mas a viagem foi cancelada e não tem previsão de ocorrer.
A Austrália, conta Karen, só está permitindo o retorno para o país de cidadãos australianos ou residentes permanentes. Pessoas que foram para o Brasil, com visto temporário ou de trabalho, como um amigo de Karen, não puderam retornar.
Logo que a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a pandemia, a empresa onde a gaúcha trabalha passou a atuar em teletrabalho. Karen viu a própria rotina e a da cidade de 5,3 milhões de habitantes mudar totalmente.
— A incerteza é a pior situação porque não sei quando poderei voltar para rever a minha família. Tenho visto de trabalho temporário e não posso correr o risco de ir e não conseguir voltar para a Austrália, até porque sei que a situação no Brasil não está controlada. Isso é o mais difícil para mim — conta Karen.
No período de total isolamento, a gaúcha passou a cuidar mais do apartamento onde mora. Aperfeiçoou o escritório antes improvisado, comprou equipamentos para ginástica e só tem ido à rua para dar algumas voltas na quadra ou passar pelo escritório devido à alguma demanda. Quando sai, Karen continua usando máscara e leva um tubo de álcool em gel. Mesmo com a flexibilização das regras, como a reabertura de restaurantes onde pode ocorrer o distanciamento de um metro e meio entre as mesas, ela percebe que nas ruas ainda não há a sensação de segurança de um pós-covid-19:
— Antes, na ida para o escritório as ruas eram muito cheias de pessoas e de carros. Agora, quando saio, ainda está tudo, praticamente, deserto.
Karen acredita que para os gaúchos, assim como em qualquer parte do mundo, a saída é seguir as regras: evitar filas, usar álcool em gel antes e ao chegar em casa e manter o distanciamento social.
— Acho que é para ajudar todo mundo. Para o sistema de saúde não ficar cheio e no fim não ter que escolher que vai morrer e quem vai viver — finaliza.
"É importante agir e pensar no coletivo"
Em Londres, o lockdown teve início em 23 de março e só terminou em 4 de julho, recorda a fashion stylist Manuela da Costa Soliz, 35 anos, que há seis anos deixou Porto Alegre para viver na Inglaterra. E assim, como Karen, na Austrália, Manuela considera a incerteza como a situação mais difícil durante este período da pandemia de coronavírus.
No início do lockdown, lembra, as regras de distanciamento social foram seguidas pela maioria. Porém, Manuela acredita que a falta de clareza no plano do governo causou ansiedade na população, gerando desconfiança sobre as ações. Parte das pessoas acabou baixando a guarda e não seguiu as regras.
Manuela trabalhou de casa no período de isolamento. Nos finais de semana, por uma hora, saía para praticar exercícios na rua com o marido, James Morgan. Até um quebra-cabeça o casal comprou para passar o tempo em casa.
— Atualmente, as coisas estão voltando ao normal, como o comércio, restaurantes e pubs, tudo com medidas especiais. Aos poucos, a população está se adaptando a esse novo normal. Porém, ainda existe muita incerteza e cautela — diz.
Manuela conta que a pandemia lhe trouxe novos hábitos relacionados a higiene e cuidados, como o uso de álcool em gel e máscara. A situação também levou a fashion stylist a refletir:
— É essencial respeitar a individualidade de cada um, pois cada pessoa vai reagir de uma forma diferente diante desse momento complicado. Acho que esse momento serve para lembrar que pequenas empresas e estabelecimentos na nossa comunidade precisam de apoio contínuo para sobreviver. Qualquer ajuda oferecida nesse período pode evitar que futuramente esses negócios/pessoas sofram um dano maior ou permanente. Acredito que é importante agir e pensar no coletivo e não no individual, é o momento de cuidar um do outro sem ser egoísta.
"Não tem 'jeitinho' para isso"
A chefe de cozinha Bárbara Jacobi, de 32 anos, que mora há mais de três anos em Queenstown, na Nova Zelândia, viu o governo neozelandês criar quatro níveis diferentes de alerta e implantar o mais rigoroso deles antes mesmo do registro da primeira morte. A população teve 48 horas de aviso para se preparar e Bárbara foi dispensada do trabalho, num hotel cinco estrelas da cidades, antes mesmo do encerramento do aviso.
Até agora, a Nova Zelândia teve apenas 22 mortes por covid-19 e pouco mais de 1,5 mil infectados em todo o país. Para Bárbara, isso representa o comportamento do povo.
— No início do lockdown, a população ficou bem assustada, mas levou muito a sério. Eles faziam tudo muito certinho. É diferente do Brasil, onde, se disser que terá lockdown, o brasileiro dará um jeitinho de sair e de burlar as regras. O neozelandês não. Leva muito a sério porque pensa "fico menos tempo em lockdown e, quando todo mundo ainda estiver com problemas com o coronavírus, estarei livre". Foi assim que as pessoas encararam aqui — conta.
A vida já está mais flexível na Nova Zelândia, relata Bárbara, com viagens dentro do país liberadas e circulação maior de pessoas nas ruas. A preocupação agora é com a retomada da economia. Na turística Queenstown, praticamente, todos os hotéis seguem fechados e alguns dos maiores não reabrirão porque dependem dos turistas internacionais. Como os voos de outros países seguem proibidos, Bárbara vive a incerteza da retomada do trabalho. Muitos imigrantes, incluindo brasileiros, que perderam o emprego deixaram o país em voos de repatriação.
A gaúcha mora com um casal — um brasileiro e uma alemã — e os dois filhos deles, de dois e três anos. Todos continuam seguindo regras de distanciamento e de cuidados redobrados com a higiene, mesmo depois da flexibilização. Bárbara é totalmente favorável às ações controladas do governo da Nova Zelândia no combate à pandemia.
— Se a gente quer que as coisas funcionem e quer acabar com o coronavírus, tem que seguir as regras. Não adianta. Não tem "jeitinho" para isso. Tem que aceitar. Não adianta querer lutar contra uma coisa que a gente não tem controle — afirma.
"Tem que ter muita força e disciplina"
Entre 13 de março e 21 de junho, a monitora de atividades escolares Vanessa Santos, 38 anos, o marido, o caminhoneiro Leandro Elias, 38 anos, e os filhos Vitória, de cinco anos, e Lyan, de dez anos, enfrentaram o chamado "estado de alarme" na cidade de Tui, na região da Galícia, na Espanha. O estado de alarme permitiu limitar a circulação de pessoas, mas não os direitos fundamentais dos cidadãos.
Durante 43 dias, os quatro não puderam sair juntos de casa. Apenas uma pessoa da unidade familiar poderia ir à rua, em horário determinado, para compras no mercado ou na farmácia.
— Eu e meu marido nos revezávamos. Mas bastava chegar na garagem do prédio para a polícia nos parar, pedir os documentos e perguntar onde iria, onde morava e o que faria na rua. Eu só saía quando já estava me sentindo claustrofóbica. Para as crianças foi pior —recorda Vanessa.
Brincar na garagem do prédio foi a alternativa para os filhos. Livros e brinquedos foram comprados pela internet para entreter os pequenos.
— O período mais difícil foi bem no começo porque não podia sair para nada — confessa Lyan.
— Eu só queria brincar no parquinho e na escola, mas não podia. Foi muito o difícil — comenta a falante Vitória.
Na primeira liberação para irem à rua, quase no final de abril, Lyan e Vitória fizeram um pedido especial à mãe: visitar a escola onde estudam. Como o prédio ficava a menos de 1km de distância foi possível cumprir o pedido. No início da flexibilização, a população só podia andar num raio de até 1km de casa.
Hoje, apesar de o país espanhol estar numa fase mais leve da flexibilização, Vanessa teme um novo lockdown porque os números voltaram a subir em parte da Espanha. Para a monitora, que é de Porto Alegre e mora com o marido há mais de uma década na Europa, a lição que fica da experiência do isolamento é a de aproveitar mais o tempo em família e com os amigos. E aos gaúchos, a mãe e os filhos deixam uma mensagem.
— Se a gente aqui conseguiu vencer a batalha, porque a guerra continua, vocês também vão conseguir. Depende da união de todos — começa Vanessa.
— Mas tem que ter muita força e disciplina... — continua Lyan.
— ... E muita paciência — completa a pequena Vitória.