
Os anos 1990 deixaram de herança pelo menos cinco grandes filmes sobre caçadas policiais: O Silêncio dos Inocentes (1991), Fogo Contra Fogo (1995), que acabou de reaparecer no menu do Amazon Prime Video, Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), Los Angeles, Cidade Proibida (1997) e A Outra Face (1997).
É comum que filmes estrangeiros sejam vítimas da falta de fidelidade ou de criatividade ao serem rebatizados no Brasil. Mais raro é o caso de um título nacional ser melhor do que o original. Enquadra-se nessa categoria Fogo Contra Fogo, nome dado a Heat, de Michael Mann.
A tradução literal (calor, aquecimento) não dá conta dos dois sentidos estabelecidos por Fogo Contra Fogo.
No nível da narrativa, temos o duelo entre dois homens exímios naquilo que fazem, ambos com suas vidas pessoais estragadas pela dedicação ao trabalho. A solidão de um é visualmente sintetizada em sua casa ampla e sem móveis em Los Angeles, com uma grande janela que dá vista para o mar — quando ele fita o horizonte, é como se estivesse mirando uma paz de espírito impossível de ser alcançada.
O outro está no seu terceiro casamento, que vai de mal a pior — cada vez mais uma figura fantasmagórica, ele ouve da esposa: "Você não mora comigo, você vive entre os restos de pessoas mortas. Você vasculha os detritos, lê o terreno, procura sinais de passagem, o cheiro de suas presas e depois as caça. Essa é a única coisa com a qual você está comprometido. O resto é a bagunça que você deixa ao passar".
Os dois personagens só estão separados pela lei e pela ética: um é o ladrão Neil McCauley, o outro é o policial Vincent Hanna. O primeiro não vai hesitar em sacrificar inocentes em nome do bem pessoal; o segundo sacrificou a si próprio para proteger inocentes. McCauley será caçado por Hanna depois que um meticuloso e milionário assalto a um carro-forte termina em um banho de sangue.
O grande duelo de Hollywood

No nível dos bastidores, em Fogo Contra Fogo temos outro duelo entre dois homens exímios naquilo que faziam: à época da estreia do filme, não seria exagero apontar Robert De Niro e Al Pacino como os maiores atores do cinema estadunidense.
De Niro, então com 52 anos, trazia no currículo duas vitórias no Oscar — como ator coadjuvante por O Poderoso Chefão: Parte II (1974) e como melhor ator por Touro Indomável (1980) — e mais quatro indicações, todas na categoria principal: Taxi Driver (1976), O Franco Atirador (1978), Tempo de Despertar (1990) e Cabo do Medo (1991).
Pacino, que tinha 55 anos, recém havia conquistado sua única estatueta, na pele do protagonista de Perfume de Mulher (1992), depois de concorrer três vezes como coadjuvante — O Poderoso Chefão (1972), Dick Tracy (1990) e O Sucesso a Qualquer Preço (1992) — e de receber mais quatro indicações como melhor ator: Serpico (1973), O Poderoso Chefão: Parte II (1974), Um Dia de Cão (1975) e Justiça para Todos (1979).
A campanha de marketing alardeava que em Fogo Contra Fogo veríamos De Niro e Pacino contracenando pela primeira vez — como os créditos acima evidenciam, eles trabalharam no segundo capítulo da saga da família Corleone, interpretando pai e filho, mas em tempos diferentes.
O diálogo antológico de "Fogo Contra Fogo"

Na produção de Fogo Contra Fogo, Al Pacino e Robert De Niro resolveram não ensaiar o antológico diálogo de seis minutos que seus personagens travam durante um café. A ideia, diz De Niro, era deixar mais genuína a falta de familiaridade entre o policial Hanna e o ladrão McCauley — que acabam se reconhecendo como reflexos um do outro.
Com o objetivo de garantir fluidez nas improvisações, o cineasta Michael Mann instruiu o diretor de fotografia Dante Spinotti, seu habitual colaborador, a filmar com duas câmeras, uma por cima do ombro de Pacino, a outra por cima do ombro de De Niro. Por isso que jamais vemos os rostos dos dois no mesmo plano. O papo é reto entre dois homens tão próximos quanto opostos.
— Eu não sei fazer outra coisa — diz Hanna.
— Nem eu — responde McCauley.
— Eu também não quero muito (fazer outra coisa) — acrescenta o policial.
— Nem eu — concorda o ladrão.
Restaurante fez fama graças à cena do filme

O encontro teve como cenário o restaurante Kate Mantilini, em Beverly Hills, na Califórnia — aliás, Mann não rodou nada em estúdio, só usou locações, o que, com o perdão do trocadilho, intensifica o calor do filme.
Antes de fechar as portas, em 2014, o estabelecimento tratou de capitalizar a mitologia de Fogo Contra Fogo. Mantinha acima da porta um painel em néon com o título em inglês, pendurou na parede um grande pôster de Pacino e De Niro na cena e permitia aos clientes solicitarem a mesma mesa ocupada pelos personagens, a de número 71, que passou a ser conhecida como The Table (A Mesa).
10 minutos de tiroteio nas ruas de Los Angeles

O jogo de gato e rato entre o policial Vincent Hanna (Al Pacino) e o ladrão Neil McCauley (Robert De Niro) se desenrola ao longo de quase três horas (são 170 minutos de duração) que passam voando graças ao talento e ao carisma dos dois astros e às habilidades como diretor e roteirista de Michael Mann — que já havia contado a mesma história no telefilme Os Tiras de Los Angeles (1989).
Realizador de Profissão: Ladrão (1981), Caçador de Assassinos (1986), Colateral (2004), Miami Vice (2006) e Inimigos Públicos (2009), ele é um esteta e um filósofo dos filmes policiais. Em Fogo Contra Fogo, intercala intensas e orquestradas cenas de ação.
Repare no longo (10 minutos!) e selvagem tiroteio pelas ruas de Los Angeles na saída de um assalto a banco. A crueza é realçada pela captação de som ao vivo, via microfones espalhados pelo set, em vez do tradicional processo de "dublagem" na pós-produção.
Coadjuvantes são peças importantes

As subtramas de Fogo Contra Fogo, em vez de desviar nossa atenção, ajudam a encorpar a atmosfera de desamparo e ansiedade. A enteada adolescente de Hanna (o segundo papel na carreira de Natalie Portman) sofre porque seu pai biológico nunca aparece — é tão ausente que nem o espectador o vê.
Um ex-presidiário (vivido por Dennis Haysbert) fica orgulhoso ao arranjar emprego em uma lanchonete, até descobrir que o patrão é abusivo.
Integrante da quadrilha de McCauley, Chris Shiherlis (o agora saudoso Val Kilmer) vê seu vício em apostas fazer desmoronar o relacionamento com Charlene (Ashley Judd), mãe de seu filho.
O elenco de coadjuvantes inclui Jon Voight, Tom Sizemore, Amy Brenneman, Diane Venora, William Fichtner, Danny Trejo, Kevin Gage... Todas as peças são importantes no tabuleiro armado por Michael Mann.
Filme influenciou nas telas e na vida real

Fogo Contra Fogo não foi lembrado nas premiações daquela temporada, mas sua influência extrapola o âmbito cinematográfico (vide o game Grand Theft Auto, que prestou tributo nas edições de 2001, 2008 e 2013).
Se, por um lado, há relatos de roubos que teriam sido inspirados pelo filme na África do Sul, na Colômbia, na Dinamarca, na Noruega e na própria Los Angeles, por outro consta que a cena em que o personagem de Val Kilmer atira em múltiplas direções e recarrega rapidamente sua arma teria sido usada como exemplar em treinamento de fuzileiros navais dos EUA.
No cinema, a herança de Fogo Contra Fogo pode ser observada em títulos como Irresistível Paixão (1998), de Steven Soderbergh — o bate-papo em um bar de hotel entre o ladrão vivido por George Clooney e a policial federal encarnada por Jennifer Lopez emula a de McCauley e Hanna —, Covil de Ladrões (2018), de Christian Gudegast, e As Viúvas (2018), de Steve McQueen.
Edgar Wright, o diretor de Em Ritmo de Fuga (2017) já declarou que Fogo Contra Fogo "é, obviamente, um avô dos filmes de assalto". Um parente bem próximo é Atração Perigosa (2010), de Ben Affleck. E um filme assumidamente apaixonado é Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008).
A propósito, o cineasta Christopher Nolan mediou um painel sobre Fogo Contra Fogo com Michael Mann, Robert De Niro e Al Pacino realizado em 2016 e incluído nos extras da edição definitiva em Blu-ray lançada no ano seguinte.
A escalação de Willian Fichtner para o elenco é uma das citações presentes nessa sombria aventura do Homem-Morcego, que retoma a fotografia fria e azulada, o peso da cidade, o caráter obsessivo dos personagens e, claro, um mirabolante assalto a banco por uma quadrilha mascarada.
A maior homenagem não poderia ser outra: a cena de Pacino e De Niro no restaurante é referenciada no interrogatório do Batman com o Coringa. Tanto no posicionamento da câmera e na edição do diálogo (plano e contraplano, plano e contraplano) quanto no teor da conversa, em que o vilão diz ao herói que eles são duas caras da mesma moeda ("Você me completa!", diz o postumamente oscarizado Heath Ledger).
Uma sequência que também é um prólogo

Em 2022, o diretor Michael Mann, em colaboração com Meg Gardiner, publicou seu primeiro romance, Heat 2. É tanto um prólogo quanto uma continuação de Fogo Contra Fogo.
A trama aborda os anos de formação do detetive Vincent Hanna e dos criminosos Neil McCauley e Chris Shiherlis, mas também avança no tempo em relação aos acontecimentos do filme.
Antes mesmo de lançar o livro, Mann, que hoje tem 82 anos, já planejava produzir uma sequência do filme. A ideia era que estreasse em 2025, para marcar o 30º aniversário de Fogo Contra Fogo. Mas consta que somente em março deste ano o diretor entregou o roteiro para os executivos da Warner.
O duplo reencontro de Al Pacino e Robert De Niro

Depois de Fogo Contra Fogo, Robert De Niro, hoje com 81 anos, e Al Pacino, que faz 85 no dia 25 de abril, trabalharam juntos mais duas vezes.
Primeiro, no sofrível As Duas Faces da Lei (2008), de John Avnet, no qual estão lado a lado. Interpretam detetives de Nova York parceiros há mais de 30 anos, conhecidos como Turk (De Niro) e Rooter (Al Pacino).
Eles investigam homicídios cometidos por um serial killer, que elimina criminosos impunes e deixa como pista poemas justificando por que estes mereceram ser justiçados à bala. O enredo é por demais manjado, ainda que confuso, e os cacoetes visuais e narrativos acabam atraindo mais atenção do que os dois atores. O filme está disponível no canal Adrenalina Pura do Amazon Prime Video.

A segunda colaboração foi bem mais robusta: O Irlandês (2019), que recebeu 10 indicações ao Oscar, incluindo melhor filme e direção (mas não ganhou nenhum), e pode ser visto na Netflix.
Nesta espécie de parque temático de Martin Scorsese, De Niro encarna Frank Sheeran, um assassino da máfia. Seu personagem tem um misto de brutalidade e fragilidade, um olho para Deus, o outro para o Diabo; seu sofrimento é quase silencioso, e sua violência chega a ser discreta.
Sheeran vai se envolver com chefões como Russell Bufalino e Joseph "Crazy Joe" Gallo; vai testemunhar a frustração dos mafiosos diante da revolução cubana liderada por Fidel Castro (que acabou com os lucrativos cassinos); vai assistir à ascensão e queda do clã Kennedy (John, o presidente, e Robert, o procurador-geral, ambos supostamente assassinados por traírem a instituição criminosa); e vai, principalmente, trabalhar como capanga de Jimmy Hoffa, que comandou o bilionário sindicato dos transportadores de carga americanos entre 1957 e 1971 e que, quatro anos depois, quando tentava retomar seu poder, desapareceu, sob circunstâncias investigadas à exaustão mas nunca esclarecidas.
O papel de Hoffa é interpretado por Pacino, em sua estreia sob o comando de Scorsese. Ou melhor: Al Pacino interpreta Al Pacino no papel de Jimmy Hoffa.
Com suas tiradas cômicas e suas explosões um tanto previsíveis, ele tenta aproveitar cada instante para roubar a cena. Mas é quando reduz um pouco a intensidade que ele nos faz lembrar do grande ator que um dia já foi, antes de se assumir como uma caricatura de si próprio. Não à toa, acabou recebendo uma indicação ao Oscar (a primeira desde Perfume de Mulher), ao Bafta e ao Globo de Ouro de melhor ator coadjuvante.
É assinante mas ainda não recebe minha carta semanal exclusiva? Clique aqui e se inscreva na newsletter.
Já conhece o canal da coluna no WhatsApp? Clique aqui: gzh.rs/CanalTiciano